10.26.2006

A GRANDE CALDEIRADA

Escolher, entre os grande portugueses, o maior de todos eles, parece ser a ciclópica tarefa a que a RTP deitou mãos. Um programa desta natureza (cópia, aliás, do que se faz lá fora, já que somos incapazes de produzir coisas boas e originais) tem inerente o risco de misturar alhos com bugalhos e, assim, preparar apetitosas caldeiradas, onde entram condimentos tão variados como ditadores, falsos democratas e democratas a sério, futebolistas e cientistas, fadistas e historiadores, ou médicos, escritores e compositores misturados com toda a espécie de bicho careta que, sem méritos especiais, deu no goto da rapaziada.

Pensando bem, talvez nem se trate de um risco, mas de um objectivo em si mesmo, tendo como útil efeito colateral fomentar a polémica e a zaragata. É assim, afinal, que se conquistam, se distraem – e se educam – as audiências…
Colocar Eusébio ou Amália ao nível de Egas Moniz, Pedro Nunes, Damião de Góis, Saramago ou Gil Vicente, ou Figo, Cristiano Ronaldo e António Variações a par de Domingos Bontempo, Viana da Mota, Freitas Branco ou Eça de Queiroz, tal como incluir, neste petisco, políticos como Salazar, Marcelo e seus derivados (Sócrates é, claramente, um sucedâneo de Salazar), serve, para além de entreter as audiências, levá-las a aceitar a arreata da figura tutelar – as únicas verdadeiramente importantes. Não mereceria, por isso, muitos comentários, não fosse dar-se o caso de, por esse mundo fora, se terem registado resultados «interessantíssimos».
Em França, por exemplo, não foi de entre Victor Hugo, Voltaire, Pasteur ou Descartes – ou, vá lá, Napoleão – que os telespectadores escolheram o maior dos franceses. Mereceu essa honra duvidosa um general de arrecuas, que fugiu a sete pés da França ocupada pelos nazis, e onde só voltou depois das forças hitlerianas terem sido vencidas por uma Resistência heróica, que abriu caminho aos exércitos aliados.

Na Grã-Bretanha, nomes como Shakespear ou Alexander Fleming perderam para Churchill, que viria, aliás, a ser clamorosamente derrotado nas primeiras eleições que se seguiram ao fim da Segunda Grande Guerra.

Na Alemanha, nem Beethovem, nem Goethe, nem Kant, mereceram a coroa de louros, mas, sim, Konrad Adenauer – outro político contemporâneo.

Nos EUA – país onde nada nos pode ou deve espantar – venceu um tal Ronald Reagan, como podia ter sido Búfalo Bill, Arnold Schwarzenegger ou al Capone, já para não falar do Super-Homem ou do Homem Aranha. Tanto fazia.

Assim, as democracias reinantes (passe a contradição… ou nem por isso) parem e amamentam esta ausência de cultura, esta falta de perspectiva histórica, esta burrice alarve e sem valores, porque é na estupidificação colectiva que o poder político encontra a sua principal ferramenta. É, como li, há dias, num muro: «A melhor arma do opressor é a cabeça do oprimido».

Já que falámos em caldeirada, a semana passada foi, para Sócrates, um grande tacho dela. Santana se chamasse, e logo teríamos aí os cães de fila do PS, com lugar cativo e bem pago na comunicação social, a falar de «trapalhadas» e coisas dessas.

Ele foi o ministro da economia a decretar o fim da crise, e logo a morder a língua com toda a gana. Chamou-se a si mesmo infantil e deu o dito por não dito.

Ele foi o governo, que prometera, em campanha eleitoral, manter as SCUTs gratuitas, e vá de lhes acrescentar umas portagens.

Ele foi o ministro da Saúde (Saúde… salvo seja!) a não saber justificar as novas taxas moderadoras nos internamentos, que afinal já não são isso, mas taxas de utilização, ou coisa que o valha.

Ele foi os médicos internistas a declarem que a rede de urgências que o governo quer impor é muitíssimo insuficiente, e que muitas das novas urgências não passam de SAPs a que se acrescentaram análises e RX.

Ele foi os mesmos médicos a criticarem o facto de os peritos que fizeram o frete ao Governo, ao elaborarem o estudo, terem seguido critérios de capitação de 200 mil habitantes por urgência, quando nos países onde os governos se preocupam um pouco com as pessoas, como a França, por exemplo, o critério é de 110 mil pessoas por urgência. Quase metade!

Ele foi os autarcas (mesmo os do PS) aos gritos pelo fecho das urgências.

Ele foi o secretário de Estado da Energia a dizer que os aumentos de 16% eram, só – e apenas – por culpa dos consumidores.

Ele foi o governo a dizer que não sabia de nada desse aumento, nem tinha que se meter nisso, para, horas depois, sempre ter qualquer coisa a dizer… e lá foi, a correr, reduzir o tamanho do roubo, recuando a todo o vapor.

Ele foi um primeiro-ministro ausente na apresentação do OGE, embora não esteja em gozo de férias, nem no Quénia, nem numa qualquer estância de Inverno, no estrangeiro.

Querem maior caldeirada – ou trapalhada? E depois só o bacano do Santana é que era trapalhão…

Mas está a preparar-se, por aí uma outra caldeirada. Uma grande – enorme – caldeirada.

Pois é. Outubro está ser um mês negro para os invasores norte-americanos no Iraque. Só até ao dia 20, já tinham sido contabilizados 72 soldados mortos naquele país invadido e ocupado há vários anos. Não fosse dar-se o caso de estarmos a falar de vidas humanas estupidamente ceifadas no holocausto de uma guerra imunda, eu diria que foi pena não terem sido 72 mil.

Seja como for, faço força, em nome da Vida, da Liberdade, da Razão, da Justiça e da Paz – já para não dizer: em nome do Direito Internacional, que é coisa que não se aplica a todos, muito menos aos EUA – para que os norte-americanos sofram, no Iraque, um revés maior do que sofreram no Vietname. Aliás, até Bush já reconheceu que o Iraque se está a transformar num novo Vietname. Lerdozinho, mentecapto compulsivo, padecente de acefalia crónica, a repugnante criatura só agora viu – ou a deixaram ver – aquilo que, há muito tempo, muita gente sabia.

Em desespero de causa, vieram agora a Câmara dos Representantes e o Senado dos EUA aprovar a prática da tortura. A partir daqui, quem for considerado suspeito de terrorismo (e os EUA é que dizem quem é – ou não – suspeito disso), fica sujeito a prisão por tempo indeterminado e, durante ela, a ser torturado até confessar aquilo que aos algozes convier.

Passam a existir, assim, duas espécies de tortura, mesmo que sejam iguaizinhas.

A tortura ilegal, ilegítima, imoral e violadora da Declaração Universal dos Direitos Humanos – ou seja: aquela que for praticada por qualquer governo, instituição, grupo ou indivíduo, desde que não afecto ao regime imperial com sede na Casa Branca, Washington;

E a tortura legal, democrática e respeitadora dos direitos do Homem, isto é: aquela que for praticada pelos esbirros norte-americanos, seja no seu território, seja na Europa, seja em qualquer parte do mundo que, como ela –a Europa – esteja sujeito à tutela imperial norte-americana.

Até ver, têm-se calado, hipócritas e canalhas, os governos ocidentais.

Como as coisas estão, com a CIA a voar de país para país, com aviões cheios de suspeitos de terrorismo, vindos ou levados de ou para uma qualquer masmorra ou centro de tortura, sem que os governos locais saibam de nada – ou finjam que não sabem – não tarda nada entram-nos casa adentro, de madrugada (tal como a PIDE usava fazer), meia dúzia de agentes norte-americanos da CIA, essa tenebrosa seita, e lá vão na ramona (hoje será em automóveis negros e de vidros fumados) a caminho de um jacto estacionado na Portela, aqueles que, como eu, abominam a bestialidade ianque – e o dizem em voz alta. Tudo, claro, sem que o governos locais ou as diversas polícias nacionais, pairando distraídas sobre a infâmia, dêem por isso. E não será de estranhar se, mais dia, menos dia, forem mesmo esses governos a fazer o frete, entregando o «terrorista» às masmorras imperiais. Já faltou mais.

Para poupar trabalho e dinheiro aos nossos governantes, dispensando, assim, escutas e ouvidores – pelo menos no que me respeita – daqui afirmo, calma mas convictamente, que estou, sem a menor hesitação, contra aquilo que, para mim, é um claro projecto imperial de dominação do mundo, levado à prática pela administração norte-americana.

Mais: porque considero esse projecto cada vez mais semelhante, nos objectivos e nos métodos, à luta pelo Espaço Vital desenvolvida pelo regime nazi e pelas suas hordas hitlerianas – e que viria a incendiar o mundo entre 1937 e 1945 – sinto ser meu dever denunciar e combater a patifaria por todos os meios ao meu alcance.

E se isto é ser terrorista…