4.16.2008


Motu continuo


Miriam, a que dançava entre véus de penumbra,
foi a primeira fome do meu corpo.

Intacta a guardo, violadora de todos os momentos,
prolongando os gestos e o sorriso navegável
nas vigílias mais antigas que recordo.
Demorávamos o olhar nos olhos um do outro,
até que o tempo nos vencesse
e invocasse a posse desse instante.

Então, de lumes sempre novos se fazia a vida,
mas só porque eu ainda não sabia que no amor
nada se perde, nada se cria,
tudo se repete.

4.12.2008


Viagem

O passado é o passado,
mas no silêncio insone o manipulo.
Assim - ou doutro modo - aqui cheguei.
A este cume, a esta sombra alada
que possui o tempo e o desfaz
- e se desfaz - em fumo.

Aqui cheguei. A este tudo.
A este nada.

4.09.2008

Provocações


Soprar a vela e ir embora


Há anos que remo contra a maré. Com braços fracos e remos feitos de tábuas, que é o que se arranja. Mas remo com a certeza da minha razão. À minha frente, no mastro deste barco imaginário, uma vela, uma simples vela, bruxuleia dentro de uma lanterna tosca. É fraca a luz, mas também é o que tenho. Vale, no entanto, por um farol salvador, já que significa, na minha (talvez quixotesca) ideia, a luz da verdade e da justiça. Um rumo. Um rumo para uma sociedade à deriva, atolada em escolhos de iniquidade, canalhice e falsidades. Um rumo que nos leve a outro sítio, a outro tempo. Um e outro limpos da pulhice que nos infecta.

Neste remar (é bom que se diga), nada procuro para mim, mas para todos. Para quase todos, já que no meu sonho não têm lugar os poderosos parasitas que nos sugam e nos definham. Viveremos bem sem eles – que nem são muitos – e que nada fazem de útil. Nada dão. Pelo contrário, apenas devoram o que outros produzem.

Há dias, contudo, em que me apetece baixar os braços. E, também, calar a voz que espanta o nevoeiro que enche de opacidade e perigos este navegar quase sem esperança. Porque há anos que remo e vejo a história repetir-se sem que nada de novo e decente aconteça. Às vezes, lá se vislumbra uma terra iluminada por um sol mais puro e mais quente, uma réstia da felicidade desejada – e merecida – mas logo as trevas caem sobre esse continente encantado, desfazendo o sonho. A última vez que isso sucedeu foi há 34 anos, que se cumprem este mês, quando for o dia 25.

E lá voltamos à faina. As mãos sangram, o suor alaga, o sal greta, o sol curte a pele envelhecida por maus-tratos e marcada por cicatrizes ancestrais. E o barco nunca enche, nem a faina dá para o sustento. E eu remo. E todos – quase todos – remamos um remar sem fim e sem proveito. Andamos às voltas nesse mar de enganos e perdição. De baixios assassinos e impiedosos.

«Não remo mais», prometo a mim mesmo, quando os músculos da alma me doem mais do que os do corpo. No entanto, não consigo largar as mãos dos remos, que já se transformaram num prolongamento dos meus braços. Também já não sei onde acabo eu e começa o barco, nem onde acaba o barco e começa o mar. E remo sempre, vigiando a luz que, no mastro tosco, tremeluz e, por milagre, resiste a todas as borrascas.

Fecho os olhos e remo. E oiço o mesmo marulhar ameaçador, como se os bojos de navios fantasmas roçassem perigosamente o meu frágil batel. Por cansaço ou cobardia, chego a desejar, nos piores momentos, que um deles me abalroe e acabe de vez com este frenesim. Mas a luz, essa pequena luz que resiste a ventanias e vagalhões, parece animar-se com o meu desânimo. E contagia-me. E recupera-me para a tarefa de remar, remar, remar sempre, como se também eu fosse o vento ou o mar. E que só são vento e mar porque não param, não se esgotam, não desistem.

Não! Mesmo sem esperança, remar contra a maré – esta maré – será sempre o meu destino.

De noite, olho as estrelas que pontilham o céu, mundos distantes onde alguns, em vez disso, vêem – ou dizem ver – sinas e futuros. Eu vejo o que já vi ontem, ou há mil anos e – desconfio – verei amanhã. A repetição de tudo. O mesmo filme. As mesmas ilusões. Os mesmos desenganos. As mesmas afrontas.

Sob a luz débil dessas estrelas eu vejo, à minha volta, neste mar sinistro e negro, os destroços da Lisnave e da Siderurgia, da Mundet e da Indelma, e flutuando, ainda brancas e legíveis, as cartas de despedimento de mais 800 portugueses que deram parte das suas vidas aos tubarões da Delphi e da Izaki Saltano.

Mais além, baloiçando numa tábua doirada, os convites aos ex-ministros Ferreira do Amaral e Jorge Coelho, para as presidências da Lusoponte e da Mota-Engil. Noutro sítio, onde deveria morar a decência e onde alguns (ainda) apregoam virtudes e atacam a repugnância dos compadres safardanas, que se deleitam num repasto de boys e girls, ironicamente um novo boy, acabadinho de chegar, ocupa o seu triste poleiro. Choro por essa rendição.

Alguns corvos, vindos sabe-se lá de onde, casquinam trocistas, porque, mesmo ao lado, desfazem-se as certidões de óbito de dezenas de portugueses que, empurrados de hospital para hospital (ou às portas das urgências encerradas) morreram como cães abandonados.

Está sujo este mar. É quase um pântano, tal a quantidade e natureza dos detritos que nele se putrefazem. Vejo recortes de jornais de há 30 anos, de há 20 anos, de há 10 anos, de ontem, de hoje e, numa estranha premonição, de amanhã, onde as notícias são sempre as mesmas: mais despedimentos, mais miséria, pior saúde, pior educação, mais insegurança, mais corrupção, mais desigualdades, pior justiça, um Portugal cada vez mais atrasado e mais pequeno.

Vejo as folhas de rendimentos dos políticos, sujas da infâmia que as escreveu, já com as respectivas reformas anexadas, boiando, nojentas, ao lado das declarações de rendimentos de milhões de reformados e pensionistas, pálidas e definhadas, carregadas com a lista das suas dívidas na farmácia e na pobre mercearia que sobrevive às grandes superfícies devoradoras. Vejo os salários mínimos e os salários em atraso misturados com altos rendimentos, dividendos e outras falcatruas.

Soprar a vela e ir embora. A tentação é essa. Mas a luz da vela, triste e trémula, tem a força e o calor de um sol. Não posso largar os remos nem sair do barco. Nem calar-me. Ela é o meu exemplo e o meu guia.

Por isso aqui estou. Talvez exausto. Talvez em carne viva. Talvez febril. Talvez inútil e perdido sem remédio. Talvez…

Paciência. Mas enquanto este mar for o que é, eu não deixarei de ser quem sou.