6.22.2008

Porreiro, pá!

« Agora estou a lembrar-me. Tu és o gajo que muitas vezes me mandava ir trabalhar!»


Grande poeta é o povo...

Começo com a tradução (muito) livre de três poemas famosos. O primeiro é de Maikovsky, famoso poeta russo. Diz assim:

Na primeira noite eles aproximam-se
e colhem uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem,
pisam as flores, matam o cão,
e não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e,
conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.

O outro, é de Bertold Brecht:

Primeiro, levaram os negros,
mas eu não me importei com isso. Eu não sou negro

Em seguida, levaram alguns operários,
mas não me importei com isso.
Eu também não era operário.

Depois, levaram os miseráveis,
mas eu não me importei com isso,
porque eu não sou miserável.

Depois, agarraram uns desempregados,
mas como tenho o meu emprego,
também não me importei.

Agora, vêm levar-me. Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém,
ninguém se importou comigo.

Outro poema, com a mesma raiz, do poeta Martin Niemuller:

Um dia, vieram e levaram o meu vizinho, que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.

No segundo dia, vieram e levaram o meu vizinho, que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.

No dia seguinte, vieram e levaram um outro vizinho, que era católico.
Como não sou católico, não me incomodei.

No quarto dia vieram e levaram-me.
Mas já não havia mais ninguém para reclamar.

A todos estes poemas, com a mesma matriz e a mesma denúncia, há que juntar um outro poema, de poeta desconhecido (grande poeta é o povo!) que por aí anda a circular.

Sócrates chegou e atacou os farmacêuticos.
Como não sou farmacêutico, não disse nada.

Depois, atacou os magistrados.
Também não disse nada, porque não sou magistrado.

A seguir, atirou-se aos funcionários públicos.
Congelou carreiras e roeu-lhe os magros ordenados.
Não quis saber. Eu não era funcionário público.

Depois, virou-se para os polícias, para os militares e,
com especial fúria, contra os professores.
E nem os padres escaparam.
Também nada disse. Era com eles, não comigo.

Aumentou os impostos, a insegurança nas ruas e nas escolas,
mas não se esqueceu de introduzir seringas nas prisões,
enquanto aumentava os medicamentos e reduzia as reformas.
E eu calado que nem um rato, pois ia-me safando.

Sem se deter, fechou escolas, urgências e maternidades.
Mas como eu não tenho filhos, não estou doente,
não engravidei ninguém, nem estou grávido, assobiei para o lado.

Nem com os aumentos de impostos, as falsas licenciaturas,
os diplomas passados ao domingo na UNI, e outras pulhices, eu me ralei.
Não era nada comigo, quem puder, que se desenrasque.

Quando vi o país a transformar-se numa enorme favela,
com milhões de pobres por aí e meninos a roubar para comer, virei a cara.
Fingi não ver. Afinal, ainda tinha o meu telemóvel.

Hoje, Sócrates bateu à minha porta com a Código de Trabalho socialista,
e atirou-me para o desemprego.

Já gritei, mas ninguém me ouviu.

Até parece que a coisa só me toca a mim!

Apetece dizer a quem é como o poema retrata: «Porreiro, pá! Olha, abrisses os olhos mais cedo. Tivesses sido decente e solidário, em vez de um crápula egoísta».

Mas este «porreiro, pá!» leva-me para outra conversa. O chumbo do Tratado de Lisboa pelo povo irlandês, graças a quem a Europa foi salva (até ver) das grilhetas que lhe queriam impor. Na verdade, no referendo realizado dia 12 Junho, a maioria do povo celta rejeitou este arremedo de constituição europeia, que em outra versão já fora rejeitado pelos povos francês e holandês.

Aliás, como disse – e bem – Alberto João Jardim, que pode ser rude e grosso, mas de parvo não tem nada, o Tratado de Lisboa só não foi chumbado em mais países porque, temendo isso mesmo, os governos europeus preferiram aprová-lo nos seus parlamentos, onde tinham a garantia de sucesso. Grandes democratas.


Recordo que, em Portugal, o governo Sócrates deu o dito por não dito, e recusou-se a efectuar um referendo popular, precisamente com medo dos seus resultados. Nos demais países europeus, excepto a Irlanda, passou-se o mesmo: recusaram aos povos o direito de se pronunciarem contra um documento que transformaria o velho Continente num feudo do poder económico, ou seja, das políticas neo-liberais. Por isso – e até ver – porreiro, pá!

Falando em neo-liberalismo: há novidades do outro lado do Atlântico. Caladas,
ignoradas, verdadeiramente censuradas. Oiçam isto, escrito por Mark Whitney e publicado no site www.resistir.info, cuja leitura aconselho.

«Olhem à vossa volta. Por toda a parte vemos uma economia debilitada. Nos "bons tempos”, os consumidores fugiam das prateleiras da carne enlatada. Hoje em dia, as vendas de conservas subiram em flecha; as mercearias têm dificuldade em manter as prateleiras cheias. Toda a gente procura a maneira mais barata de alimentar a família. O Departamento do Trabalho garante que a inflação é de apenas 4%, mas todos sabemos que isso é uma treta. O preço dos alimentos está para além do imaginável. O pão branco subiu 13%, o bacon subiu 7% e a manteiga de amendoim mais de 9%. A inflação entrou em derrapagem e não se sabe onde vai parar. O dólar está quase ao nível do peso e os trabalhadores lutam para sobreviver. O que acontece é que há cada vez mais pessoas "no mais rico país do mundo" a sobreviver à custa da carne de porco enlatada. Isto diz tudo.

Em Santa Bárbara, os parques de estacionamento estão a ser transformados em dormitórios para que as famílias que perderam as suas casas no escândalo do subprime possam dormir nos seus carros sem serem incomodadas pela polícia. O mesmo acontece em Los Angeles, onde nasceram cidades de tendas nos terrenos dos caminhos-de-ferro para acomodar o número crescente de pessoas que perderam os seus empregos ou não têm hipótese de alugar um quarto com os seus salários ganhos na indústria ou nos serviços. Por todo o lado as pessoas sentem o cinto a apertar; é por isso que 9 em cada 10 americanos acham agora que o país caminha na direcção errada e é por isso que a confiança dos consumidores se encontra no ponto mais baixo desde a Grande Depressão. É este o grande triunfo da economia vudu do "gotejamento do mercado livre de Reagan; famílias completas a viverem dentro dos seus automóveis à espera que abra a loja de penhores.»


Agora sou eu que digo:

Porreiro, pá!