1.25.2007

Deixem-me rir

Intensificou-se a discussão sobre a liberalização do aborto até às dez semanas de gravidez, e já as mentiras, as meias verdades e os falsos moralismos, típicos das campanhas de caça ao voto, andam no ar. Ainda voltarei ao assunto, mas vou deixar, para já, uma nota suscitada pelos partidários do Sim.

Os que defendem que o aborto deve ser legal – dizendo melhor: livre e gratuito – até às dez semanas de gravidez, e crime a partir daí, continuam a esforçar-se por esconder (e, até, em negar) que apenas estão a pedir que o aborto seja mais uma medida contraceptiva, como a pílula, o preservativo ou qualquer outra. Ainda não me explicaram – e duvido que alguma vez o façam – em que milagrosa página da ciência aprenderam que o feto é natureza morta até às dez semanas (logo, coisa descartável, uma dispensável excrescência, algo inerte e sem sentido e, por isso, apto a ser atirado para um esgoto, forno crematório ou aterro sanitário, mas com toda a protecção e dignidade da lei) e, passa a ser, o mesmíssimo feto, coisa viva – e já humana – um segundo que seja após as dez semanas. Porque não gosto de mentiras, de meias verdades, ou de me sentir manipulado, tal bastaria, se outras razões não tivesse, para não votar como estes senhores e senhoras, em nome da modernidade e dos avanços civilizacionais, me pedem que faça.

E enquanto haverá dinheiro, no SNS, para pagar o aborto a quem, por razões económicas, sociais ou outras ainda mais íntimas e privadas (ou, até, pelo mais enternecedor desleixo ou bendita irresponsabilidade), enquanto haverá dinheiro, dizia eu, para quem queira sujeitar-se ao tal «desmancho», ainda que se trate de grávidas absolutamente saudáveis, o Estado não tem dinheiro para pagar ou, sequer, comparticipar, uma vacina que evita uma doença que mata uma portuguesa por dia. Face à delícia do paradoxo, só peço que me deixem rir…

É isso mesmo. Comparticipar na prevenção do cancro do colo do útero, através de uma vacina que está a ser comercializada a 480 euros, é coisa que parece não caber nos horizontes do senhor ministro da Saúde, mais interessado em fechar urgências, maternidades e Serviços de Atendimento Permanente.

Como em tudo o que é mau, também Portugal mostra a mais alta taxa de incidência da Europa deste tipo de cancro, registando 900 novos casos por ano, sendo mais de 300 deles mortais. Veremos se o equilíbrio das contas públicas é mais importante do que a vida destas mulheres. E veremos se os grandes defensores da «dignidade» da mulher se organizam com a mesma força e o mesmo empenho pela gratuitidade desta vacina contra o cancro do colo do útero, esse, sim, um verdadeiro e dramático caso de saúde pública. Mas, sabendo eu como as coisas são, deixem-me rir…

E já que estamos a falar de questões de saúde, não podemos ignorar a morte de um homem de 54 anos, que teve a infelicidade de ser vítima de um acidente de viação, em Odemira, no distrito de Beja, num local que distava mais de cem quilómetros do hospital mais próximo e, em consequência, de uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação. A partir daqui, foram seis horas em bolandas, com o Centro de Orientação de Doentes Urgentes a decidir que bastava uma ambulância dos Bombeiros de Odemira para socorrer o sinistrado, quando o que estaria indicado era a Viatura Médica de Emergência e Reanimação. Levado para o SAP de Odemira, acabou por ter de esperar pela tal VMER. Ali, ao ser verificada a gravidade do caso, optou-se, só então, pela evacuação para Lisboa, com a respectiva espera pela chegada de um helicóptero e o longo voo até ao Hospital de Santa Maria, onde viria a falecer.

Como qualquer pessoa normal perceberá ao tomar conhecimento de um caso destes, estamos perante uma gritante situação de incúria, que se traduz, em última análise, num profundo desprezo pelas gentes deste país, em geral, e do Alentejo, em particular.

É que, no caso que referimos, o serviço de neurocirurgia mais próximo de Odemira, fica em… Lisboa! Aliás, não existem serviços de neurocirurgia a sul do Tejo, havendo apenas especialistas em alguns turnos dos hospitais de Faro e Portimão.

E o senhor ministro da Saúde do governo do socialista Sócrates, tão rápido a encerrar maternidades, urgências e SAP’s, a atrasar a colocação de médicos, a aumentar as taxas moderadoras e a criar outras – e que, por estar absorvido em tão caritativas acções, ainda não teve tempo para se preocupar com esta gritante falta de meios numa das regiões mais desprezadas do país – vem agora prometer averiguações ao sucedido.
Deixem-me rir! Ó sôr ministro! O assunto está mais do que averiguado. Os factos falam por si. A assistência deficiente no distrito de Beja – e, de uma maneira geral, por esse país fora – só tem uma única causa: a política que V. Exa., e o seu governo – bem como os anteriores ministro da mesma pasta e respectivos governos – têm levado à prática. Por isso, averigúe-se a si próprio, investigue-se, analise-se e, depois, se tiver uma estranha sensação de náusea, se lhe ocorrer um ou outro vómito, olhe, chame o INEM.

Mas onde o governo «trata da saúde» aos portugueses – e bem! – é quando lhes corrói o poder de compra. Tudo simples. Tudo sempre igual. Tudo muitíssimo eficaz, ano após ano. Decidem-se os aumentos salariais com base numa inflação ilusória, ficcional, que é sempre inferior à inflação que depois de verifica. Mecanismos de correcção que reponham o poder de compra assim perdido? Que corrijam a malandrice? Deixem-me rir…

E não sou eu que o digo, meus amigos, mas o INE, que confirma uma subida média dos preços, em 2006, de 3,1%. Como os aumentos salariais foram muito inferiores à subida dos preços para mais de 2 milhões de trabalhadores por conta de outrem (730 mil funcionários públicos, e mais de 1.300.000 empregados do sector privado), cujos aumentos salariais, nesse ano, oscilaram entre os 1,5%, no sector público, e os 2,5%, no sector privado, as contas são facílimas de fazer. Até Guterres as fazia!

Quem não dá por estes apertos no orçamento familiar é, entre outros, o senhor ministro da Defesa, que acaba de ser contemplado com um subsídio de 44,14 euros por dia, o que dá 1.324 euros por mês (ou seja: mais de 265 continhos) a juntar ao ser ordenado de 4.651 euros. Tudo junto, soma 5.971 euros, 1.200 contos, em números redondos na moeda antiga.

Parece que o senhor ministro declarou que a sua residência permanente é no Funchal, coisa de que não se duvida, mesmo sabendo-se que tem casa própria, em Lisboa. Acontece, porém, que essa casa foi posta à venda em 2002, e que só em Fevereiro deste ano é que vai ser lavrada a escritura correspondente à venda.

Onde viveu – e vive – entretanto, o senhor ministro, é coisa que está num conveniente segredo, tanto mais que é ministro de Defesa, sabe muito sobre os voos da CIA e outras questões melindrosas da política mundial, convindo, por isso, resguardá-lo da curiosidade do terrorismo internacional.

Seja como for, ainda bem que a lei prevê – muito bem previstas – estas situações, e nem sei se o tal subsídio mensal, equivalente a três salários mínimos, chega para compensar um abnegado servidor da Pátria por este cruel e sofrido afastamento da sua casinha no Funchal.

O que sofre um ministro, não é?

Mas, se não se importam, deixem-me rir, está bem?

Deixem-me rir...

Intensificou-se a discussão sobre a liberalização do aborto até às dez semanas de gravidez, e já as mentiras, as meias verdades e os falsos moralismos, típicos das campanhas de caça ao voto, andam no ar. Ainda voltarei ao assunto, mas vou deixar, para já, uma nota suscitada pelos partidários do Sim.

Os que defendem que o aborto deve ser legal – dizendo melhor: livre e gratuito – até às dez semanas de gravidez, e crime a partir daí, continuam a esforçar-se por esconder (e, até, em negar) que apenas estão a pedir que o aborto seja mais uma medida contraceptiva, como a pílula, o preservativo ou qualquer outra. Ainda não me explicaram – e duvido que alguma vez o façam – em que milagrosa página da ciência aprenderam que o feto é natureza morta até às dez semanas (logo, coisa descartável, uma dispensável excrescência, algo inerte e sem sentido e, por isso, apto a ser atirado para um esgoto, forno crematório ou aterro sanitário, mas com toda a protecção e dignidade da lei) e, passa a ser, o mesmíssimo feto, coisa viva – e já humana – um segundo que seja após as dez semanas. Porque não gosto de mentiras, de meias verdades, ou de me sentir manipulado, tal bastaria, se outras razões não tivesse, para não votar como estes senhores e senhoras, em nome da modernidade e dos avanços civilizacionais, me pedem que faça.

E enquanto haverá dinheiro, no SNS, para pagar o aborto a quem, por razões económicas, sociais ou outras ainda mais íntimas e privadas (ou, até, pelo mais enternecedor desleixo ou bendita irresponsabilidade), enquanto haverá dinheiro, dizia eu, para quem queira sujeitar-se ao tal «desmancho», ainda que se trate de grávidas absolutamente saudáveis, o Estado não tem dinheiro para pagar ou, sequer, comparticipar, uma vacina que evita uma doença que mata uma portuguesa por dia. Face à delícia do paradoxo, só peço que me deixem rir…

É isso mesmo. Comparticipar na prevenção do cancro do colo do útero, através de uma vacina que está a ser comercializada a 480 euros, é coisa que parece não caber nos horizontes do senhor ministro da Saúde, mais interessado em fechar urgências, maternidades e Serviços de Atendimento Permanente.

Como em tudo o que é mau, também Portugal mostra a mais alta taxa de incidência da Europa deste tipo de cancro, registando 900 novos casos por ano, sendo mais de 300 deles mortais. Veremos se o equilíbrio das contas públicas é mais importante do que a vida destas mulheres. E veremos se os grandes defensores da «dignidade» da mulher se organizam com a mesma força e o mesmo empenho pela gratuitidade desta vacina contra o cancro do colo do útero, esse, sim, um verdadeiro e dramático caso de saúde pública. Mas, sabendo eu como as coisas são, deixem-me rir…

E já que estamos a falar de questões de saúde, não podemos ignorar a morte de um homem de 54 anos, que teve a infelicidade de ser vítima de um acidente de viação, em Odemira, no distrito de Beja, num local que distava mais de cem quilómetros do hospital mais próximo e, em consequência, de uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER). A partir daqui, foram seis horas em bolandas, com o Centro de Orientação de Doentes Urgentes a decidir que bastava uma ambulância dos Bombeiros de Odemira para socorrer o sinistrado, quando o que estaria indicado era a tal VMER. Levado para o SAP de Odemira, acabou por ter de esperar pela tal viatura. Ali, ao ser verificada a gravidade do caso, optou-se, só então, pela evacuação para Lisboa, com a respectiva espera pela chegada de um helicóptero e o longo voo até ao Hospital de Santa Maria, onde viria a falecer.

Como qualquer pessoa normal perceberá ao tomar conhecimento de um caso destes, estamos perante uma gritante situação de incúria, que se traduz, em última análise, num profundo desprezo pelas gentes deste país, em geral, e do Alentejo, em particular.

É que, no caso que referimos, o serviço de neurocirurgia mais próximo de Odemira, fica em… Lisboa! Aliás, não existem serviços de neurocirurgia a sul do Tejo, havendo apenas especialistas em alguns turnos dos hospitais de Faro e Portimão.

E o senhor ministro da Saúde do governo do socialista Sócrates, tão rápido a encerrar maternidades, urgências e SAP’s, a atrasar a colocação de médicos, a aumentar as taxas moderadoras e a criar outras – e que, por estar absorvido em tão caritativas acções, ainda não teve tempo para se preocupar com esta gritante falta de meios numa das regiões mais desprezadas do país – vem agora prometer averiguações ao sucedido.

Deixem-me rir! Ó sôr ministro! O assunto está mais do que averiguado. Os factos falam por si. A assistência deficiente no distrito de Beja – e, de uma maneira geral, por esse país fora – só tem uma única causa: a política que V. Exa., e o seu governo – bem como os anteriores ministro da mesma pasta e respectivos governos – têm levado à prática. Por isso, averigúe-se a si próprio, investigue-se, analise-se e, depois, se tiver uma estranha sensação de náusea, se lhe ocorrer um ou outro vómito, olhe, chame o INEM.

Mas onde o governo «trata da saúde» aos portugueses – e bem! – é quando lhes corrói o poder de compra. Tudo simples. Tudo sempre igual. Tudo muitíssimo eficaz, ano após ano. Decidem-se os aumentos salariais com base numa inflação ilusória, ficcional, que é sempre inferior à inflação que depois de verifica. Mecanismos de correcção que reponham o poder de compra assim perdido? Que corrijam a malandrice? Deixem-me rir…

E não sou eu que o digo, meus amigos, mas o INE, que confirma uma subida média dos preços, em 2006, de 3,1%. Como os aumentos salariais foram muito inferiores à subida dos preços para mais de 2 milhões de trabalhadores por conta de outrem (730 mil funcionários públicos, e mais de 1.300.000 empregados do sector privado), cujos aumentos salariais, nesse ano, oscilaram entre os 1,5%, no sector público, e os 2,5%, no sector privado, as contas são facílimas de fazer. Até Guterres as fazia!

Quem não dá por estes apertos no orçamento familiar é, entre outros, o senhor ministro da Defesa, que acaba de ser contemplado com um subsídio de 44,14 euros por dia, o que dá 1.324 euros por mês (ou seja: mais de 265 continhos) a juntar ao ser ordenado de 4.651 euros. Tudo junto, soma 5.971 euros, 1.200 contos, em números redondos na moeda antiga.

Parece que o senhor ministro declarou que a sua residência permanente é no Funchal, coisa de que não se duvida, mesmo sabendo-se que tem casa própria, em Lisboa. Acontece, porém, que essa casa foi posta à venda em 2002, e que só em Fevereiro deste ano é que vai ser lavrada a escritura correspondente à venda.

Onde viveu – e vive – entretanto, o senhor ministro, é coisa que está num conveniente segredo, tanto mais que é ministro de Defesa, sabe muito sobre os voos da CIA e outras questões melindrosas da política mundial, convindo, por isso, resguardá-lo da curiosidade do terrorismo internacional.

Seja como for, ainda bem que a lei prevê – muito bem previstas – estas situações, e nem sei se o tal subsídio mensal, equivalente a três salários mínimos, chega para compensar um abnegado servidor da Pátria por este cruel e sofrido afastamento da sua casinha no Funchal.

O que sofre um ministro, não é?

Mas, se não se importam, deixem-me rir, está bem?

1.06.2007

País Negreiro

Enquanto o primeiro-ministro já estava em gozo de umas merecidas férias no Brasil, a única unidade hospitalar capaz de efectuar transplantes hepáticos em crianças – localizada em Coimbra – encerrava por falta de meios humanos. O ministro da Saúde comprometeu-se a enviar os casos urgentes para o estrangeiro, talvez para as grávidas de Elvas, que vão dar à luz a Badajoz, não se sentirem umas privilegiadas. E lá foi dizendo, pelo meio, que a coisa não é muito grave, porque os casos de transplante hepático nem sequer são muito elevados. Assim como quem diz: se morrerem alguns, também nem morrem muitos…

Na mesma altura, um português comum, residente em Pinhal de Frades, tinha alta do Hospital Garcia de Orta. Algumas horas depois – decorria a noite de sexta para sábado do último fim-de-semana, ou seja, estávamos praticamente nas vésperas da passagem de ano – esse português comum vem a falecer, apesar de, horas antes, os médicos do referido hospital terem decidido mandá-lo para casa, certamente porque consideraram que nada justificaria quaisquer cuidados clínicos – ou porque a cama era precisa para um caso mais grave. Já não viu 2007. Se Pinhal de Frades fosse perto de Badajoz, talvez ainda este nosso compatriota estivesse vivo. Assim…

Entretanto, seis pescadores morriam a cerca de 50 metros da praia, perto da Nazaré, alegadamente por terem tardado os meios de salvamento. Cinco dias depois, a pequena embarcação ainda ali está, na zona de rebentação, volteando ao sabor das ondas (só na madrugada de hoje, quarta-feira foi recuperada das águas), faltando ainda resgatar dois corpos. Não sei porquê, mas parece que, em Portugal, as coisas mais simples se transformam sempre em coisas complicadas, e tudo resulta numa sucessão de falhanços, atrasos e infelizes coincidências. Ocorreu-me que se tivessem pedido ajuda a Espanha, talvez, apesar da distância, as operações de busca e salvamento tivessem sido eficazes. Por cá, dirá o governo, ter meios de salvamento em prontidão, 24 horas por dia, não se justifica, pois casos destes não acontecem todos os dias. «Também não morrem assim tantos pescadores, que justifique essa despesa, não é?», perguntará, iluminado, o pequenino ministro da Defesa.

Continuamos a olhar, distraidamente, para o ecrã da televisão, vendo uma sucessão de imagens sempre iguais, ano após ano, de Sidney a Tóquio, de Moscovo a Berlim, de Paris a Londres, de Lisboa e Porto ao Funchal, com gente, aparentemente feliz e esperançada, expressando os votos – e as vulgaridades – do costume, entre duas taças de espumante, e tendo, como pano de fundo, os vários espectáculos de fogo de artifício, algo a condizer com outros artifícios da época, como seja esse o de nos fazerem acreditar, todos os anos por esta altura, que é possível virem aí tempos melhores.

Este pensamento desperta-me para a dura realidade que vamos ter em 2007. A electricidade vai encarecer 6%. Como se este aumento não se repercutisse em vários outros os preços, os transportes sobem 2,1% (só o bilhete simples vai subir mais de 8%). A água também não escapa aos fatídicos 2,1% da inflação prometida. Os combustíveis vão igualmente subir, mesmo que o preço do petróleo baixe, porque Sócrates ordenou que o imposto sobre combustíveis aumentasse. Arrastarão, na onda, tudo o que pudesse ter escapado à fúria «actualizadora». Os serviços postais subirão 1,8%. Quem tem empréstimos para compra de habitação, verá os seus encargos aumentarem mais de 6% (podendo ser muito maiores se, do estrangeiro, vierem indicações nesse sentido). Nos hospitais e centros de saúde entrarão em vigor novas taxas moderadoras (nas urgências e nos internamentos) e as taxas que já existem serão, também elas, aumentadas. Como se não bastasse tudo isto para infernizar a nossa vida, até o pão, meus amigos – até o pãozinho para a boca! – vai subir 20%.

Contas feitas, uma família composta por casal com dois filhos em idade escolar, com um rendimento mensal de 1.200 euros – e há muitas com este rendimento de apenas 240 contitos – vai gastar, em média, mais 62 euros do que em 2006, para comprar exactamente o mesmo. Porém, o seu rendimento só subirá 15 euros. Resultado: o seu poder de compra, que já era ridículo, leva um golpe de 47 euros, ou seja, 9.400$00.

Meticulosamente – impiedosamente – o governo fecha o cerco. Os ordenados não aumentam – ou aumentam abaixo da inflação. Aos míseros 1,5% dados aos funcionários públicos, há que retirar o aumento da contribuição para a ADSE (para já, 0,5%). E até os reformados serão afectados por esta medida. Milhões de portugueses vão ter um 2007 muito pior do que 2006. Os dois milhões de pobres que já existem ficarão ainda pior, e a esses outros se acrescentarão. Mas, meus amigos, esta é a passagem de ano habitual dos últimos 32 anos, só que bastante mais violenta e desumana.

Foi com estes pensamentos redemoinhando na cabeça que, nessa noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro me fui deitar – e com eles adormeci. E sonhei.

Sonhei que, fartos disto tudo, milhões de portugueses, de trouxa às costas, seguiam, em largas e longas filas, a caminho da fronteira com Espanha. Eram, bem vistas as coisas, os émulos daqueles que, oriundos da África subsariana, se fazem ao mar em frágeis embarcações, rumando às Canárias ou, até, ao sul de Espanha, na busca de uma vida melhor. Também nós, fartos de sermos maltratados pelo poder político e económico, tínhamos decidido «dar o salto», aproveitando, aliás, uma das poucas vantagens (em teoria, claro) que a integração europeia nos trouxe: a livre circulação de pessoas e bens.

Não sei como acabou o sonho, mas sei que, de manhã, ainda estava sob a sua influência. E como também gosto de sonhar acordado, pus-me a pensar no que se passaria se acontecesse, realmente, algo semelhante. Que fariam Sócrates e Belmiros, Cavacos e Amorins, todos os Pachecos e Espíritos Santos se, de um dia para o outro, milhões de portugueses decidissem fazer-lhes um enorme manguito e partir à procura, no estrangeiro, de uma vida mais segura e menos indigna? Assim como quem diz: «Já que o país é quase todo vosso, olhem, fiquem com o resto. Desenrasquem-se!». Se todos nós pudéssemos, de facto – e não, apenas, em teoria – sair deste barco negreiro em que Portugal se está a transformar (a passos largos, e não «passo-a-passo») e procurarmos noutras paragens uma sociedade mais justa e decente – ou, dizendo melhor, menos injusta e indecente – como se governariam os políticos e aqueles que vivem do trabalho dos outros?

Fariam o que sabem fazer melhor. Usariam a força, ignorariam (ou alterariam) os tratados e, consequentemente, fechariam as fronteiras. Proibiriam a emigração. Porque sem a força do trabalho, meus amigos, a «parasitagem» emagrece, definha e morre.

Claro que estamos no campo da pura utopia. Os grandes senhores do capital financeiro, os grandes capitalistas, os donos dos grandes grupos económicos, os magnatas, ou os gajos da «massa» (fica à vossa escolha a designação que considerem menos esgotada), esses, se as coisas não correrem a seu gosto, podem mandar o país às malvas e assentar arraiais noutro país qualquer. Aliás, é isso que se passa com as deslocalizações. Foi por isso, de resto, que Belmiro de Azevedo disse, ainda não há muito tempo, que estava a pensar deixar de investir em Portugal, para o fazer no estrangeiro. (Ameaçou e colheu, como sabemos).

Mas esta democracia é mesmo assim. Enquanto Sócrates gozava uns dias no Brasil, seis pescadores morriam na Nazaré; e um português comum morria por falta da devida assistência médica; e o único serviço de transplantes hepáticos para crianças era encerrado; e a comunicação social anunciava os novos aumentos, como quem anuncia o tempo que vai fazer; e eu sonhava que os portugueses despertavam da sua crónica letargia e abalavam para Espanha à procura de uma vida decente, já que não sabem fazer algo muito mais fácil, que é unirem-se aqui, no seu país, e dizer, a uma única voz: BASTA!

E enquanto o não fizerem, este rectângulo de terra, que o mar todos os dias rói um pouco, não passará de um desprezível país negreiro.