1.06.2007

País Negreiro

Enquanto o primeiro-ministro já estava em gozo de umas merecidas férias no Brasil, a única unidade hospitalar capaz de efectuar transplantes hepáticos em crianças – localizada em Coimbra – encerrava por falta de meios humanos. O ministro da Saúde comprometeu-se a enviar os casos urgentes para o estrangeiro, talvez para as grávidas de Elvas, que vão dar à luz a Badajoz, não se sentirem umas privilegiadas. E lá foi dizendo, pelo meio, que a coisa não é muito grave, porque os casos de transplante hepático nem sequer são muito elevados. Assim como quem diz: se morrerem alguns, também nem morrem muitos…

Na mesma altura, um português comum, residente em Pinhal de Frades, tinha alta do Hospital Garcia de Orta. Algumas horas depois – decorria a noite de sexta para sábado do último fim-de-semana, ou seja, estávamos praticamente nas vésperas da passagem de ano – esse português comum vem a falecer, apesar de, horas antes, os médicos do referido hospital terem decidido mandá-lo para casa, certamente porque consideraram que nada justificaria quaisquer cuidados clínicos – ou porque a cama era precisa para um caso mais grave. Já não viu 2007. Se Pinhal de Frades fosse perto de Badajoz, talvez ainda este nosso compatriota estivesse vivo. Assim…

Entretanto, seis pescadores morriam a cerca de 50 metros da praia, perto da Nazaré, alegadamente por terem tardado os meios de salvamento. Cinco dias depois, a pequena embarcação ainda ali está, na zona de rebentação, volteando ao sabor das ondas (só na madrugada de hoje, quarta-feira foi recuperada das águas), faltando ainda resgatar dois corpos. Não sei porquê, mas parece que, em Portugal, as coisas mais simples se transformam sempre em coisas complicadas, e tudo resulta numa sucessão de falhanços, atrasos e infelizes coincidências. Ocorreu-me que se tivessem pedido ajuda a Espanha, talvez, apesar da distância, as operações de busca e salvamento tivessem sido eficazes. Por cá, dirá o governo, ter meios de salvamento em prontidão, 24 horas por dia, não se justifica, pois casos destes não acontecem todos os dias. «Também não morrem assim tantos pescadores, que justifique essa despesa, não é?», perguntará, iluminado, o pequenino ministro da Defesa.

Continuamos a olhar, distraidamente, para o ecrã da televisão, vendo uma sucessão de imagens sempre iguais, ano após ano, de Sidney a Tóquio, de Moscovo a Berlim, de Paris a Londres, de Lisboa e Porto ao Funchal, com gente, aparentemente feliz e esperançada, expressando os votos – e as vulgaridades – do costume, entre duas taças de espumante, e tendo, como pano de fundo, os vários espectáculos de fogo de artifício, algo a condizer com outros artifícios da época, como seja esse o de nos fazerem acreditar, todos os anos por esta altura, que é possível virem aí tempos melhores.

Este pensamento desperta-me para a dura realidade que vamos ter em 2007. A electricidade vai encarecer 6%. Como se este aumento não se repercutisse em vários outros os preços, os transportes sobem 2,1% (só o bilhete simples vai subir mais de 8%). A água também não escapa aos fatídicos 2,1% da inflação prometida. Os combustíveis vão igualmente subir, mesmo que o preço do petróleo baixe, porque Sócrates ordenou que o imposto sobre combustíveis aumentasse. Arrastarão, na onda, tudo o que pudesse ter escapado à fúria «actualizadora». Os serviços postais subirão 1,8%. Quem tem empréstimos para compra de habitação, verá os seus encargos aumentarem mais de 6% (podendo ser muito maiores se, do estrangeiro, vierem indicações nesse sentido). Nos hospitais e centros de saúde entrarão em vigor novas taxas moderadoras (nas urgências e nos internamentos) e as taxas que já existem serão, também elas, aumentadas. Como se não bastasse tudo isto para infernizar a nossa vida, até o pão, meus amigos – até o pãozinho para a boca! – vai subir 20%.

Contas feitas, uma família composta por casal com dois filhos em idade escolar, com um rendimento mensal de 1.200 euros – e há muitas com este rendimento de apenas 240 contitos – vai gastar, em média, mais 62 euros do que em 2006, para comprar exactamente o mesmo. Porém, o seu rendimento só subirá 15 euros. Resultado: o seu poder de compra, que já era ridículo, leva um golpe de 47 euros, ou seja, 9.400$00.

Meticulosamente – impiedosamente – o governo fecha o cerco. Os ordenados não aumentam – ou aumentam abaixo da inflação. Aos míseros 1,5% dados aos funcionários públicos, há que retirar o aumento da contribuição para a ADSE (para já, 0,5%). E até os reformados serão afectados por esta medida. Milhões de portugueses vão ter um 2007 muito pior do que 2006. Os dois milhões de pobres que já existem ficarão ainda pior, e a esses outros se acrescentarão. Mas, meus amigos, esta é a passagem de ano habitual dos últimos 32 anos, só que bastante mais violenta e desumana.

Foi com estes pensamentos redemoinhando na cabeça que, nessa noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro me fui deitar – e com eles adormeci. E sonhei.

Sonhei que, fartos disto tudo, milhões de portugueses, de trouxa às costas, seguiam, em largas e longas filas, a caminho da fronteira com Espanha. Eram, bem vistas as coisas, os émulos daqueles que, oriundos da África subsariana, se fazem ao mar em frágeis embarcações, rumando às Canárias ou, até, ao sul de Espanha, na busca de uma vida melhor. Também nós, fartos de sermos maltratados pelo poder político e económico, tínhamos decidido «dar o salto», aproveitando, aliás, uma das poucas vantagens (em teoria, claro) que a integração europeia nos trouxe: a livre circulação de pessoas e bens.

Não sei como acabou o sonho, mas sei que, de manhã, ainda estava sob a sua influência. E como também gosto de sonhar acordado, pus-me a pensar no que se passaria se acontecesse, realmente, algo semelhante. Que fariam Sócrates e Belmiros, Cavacos e Amorins, todos os Pachecos e Espíritos Santos se, de um dia para o outro, milhões de portugueses decidissem fazer-lhes um enorme manguito e partir à procura, no estrangeiro, de uma vida mais segura e menos indigna? Assim como quem diz: «Já que o país é quase todo vosso, olhem, fiquem com o resto. Desenrasquem-se!». Se todos nós pudéssemos, de facto – e não, apenas, em teoria – sair deste barco negreiro em que Portugal se está a transformar (a passos largos, e não «passo-a-passo») e procurarmos noutras paragens uma sociedade mais justa e decente – ou, dizendo melhor, menos injusta e indecente – como se governariam os políticos e aqueles que vivem do trabalho dos outros?

Fariam o que sabem fazer melhor. Usariam a força, ignorariam (ou alterariam) os tratados e, consequentemente, fechariam as fronteiras. Proibiriam a emigração. Porque sem a força do trabalho, meus amigos, a «parasitagem» emagrece, definha e morre.

Claro que estamos no campo da pura utopia. Os grandes senhores do capital financeiro, os grandes capitalistas, os donos dos grandes grupos económicos, os magnatas, ou os gajos da «massa» (fica à vossa escolha a designação que considerem menos esgotada), esses, se as coisas não correrem a seu gosto, podem mandar o país às malvas e assentar arraiais noutro país qualquer. Aliás, é isso que se passa com as deslocalizações. Foi por isso, de resto, que Belmiro de Azevedo disse, ainda não há muito tempo, que estava a pensar deixar de investir em Portugal, para o fazer no estrangeiro. (Ameaçou e colheu, como sabemos).

Mas esta democracia é mesmo assim. Enquanto Sócrates gozava uns dias no Brasil, seis pescadores morriam na Nazaré; e um português comum morria por falta da devida assistência médica; e o único serviço de transplantes hepáticos para crianças era encerrado; e a comunicação social anunciava os novos aumentos, como quem anuncia o tempo que vai fazer; e eu sonhava que os portugueses despertavam da sua crónica letargia e abalavam para Espanha à procura de uma vida decente, já que não sabem fazer algo muito mais fácil, que é unirem-se aqui, no seu país, e dizer, a uma única voz: BASTA!

E enquanto o não fizerem, este rectângulo de terra, que o mar todos os dias rói um pouco, não passará de um desprezível país negreiro.

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