5.25.2008

Intermezzo IV


Oferenda

Quando o instante singular revela
o sentido da folha ou a minúcia do pólen,
há um espaço translúcido onde a palavra nasce
consonante e pura.

Escrevê-la,
é edificar a nuvem, gota a gota,
e da janela vê-la ir,
como se não fosse nossa
.

5.23.2008

A propósito de um cigarro


Quando os reis vão nus

O facto, só por si, não tem um significado por aí além, pois ninguém é perfeito, nem o senhor Pinto de Sousa, também conhecido por «engenheiro» José Sócrates. Por isso, ter sido apanhado em transgressão, violando a chamada Lei do Tabaco, que em boa hora criou – alguma coisa de meritório, enfim, saiu da sua cartola – bem podia ser levado à conta dos pecados menores, se bem que, para quem tanto apregoa o rigor, o bom carácter e outras virtudes que tais, tenha sido algo verdadeiramente muito feio.

Não que me espante, pois a ideia que tenho do sujeito que governa o país permite-me pensar que o acto transgressor não destoa no quadro da personalidade do dito cujo. Para mim, Sócrates está nos antípodas da imagem que tenta vender ao país, ou seja, é um rei que vai nuzinho de todo. Coisa que, segundo as sondagens, parece estar a ser constatada por um número cada vez maiores de portugueses.

Fumou, então, o seu cigarro, às escondidas (mas não o suficiente) e o gesto chegou à opinião pública. Que não sabia que estava a violar uma lei; que pedia perdão pelo facto; que ia – vejam lá bem! – deixar de fumar. E riu-se.

Se violar a lei – que seria o primeiro a não poder ignorar – já tinha sido mau, a emenda foi pior do que o soneto.

Não sabia? Depois da algazarra que toda que a lei suscitou? Bom… quando na rua já lhe chamavam mentiroso, o que lhe chamarão agora? Reles trampolineiro? Aldrabãozeco de trazer por casa?

Pede perdão? Então, quando se transgride uma lei basta pedir perdão? Se assim é, pois que se fechem todos os tribunais, esquadras da PSP e postos da GNR, tarefa que o Governo, aliás, parece já ter encetado. Pague mais é lá a multa e deixe-se de tretas, que é o que acontece a quem prevarica, conheça ou não as leis. Olhe! A sua ASAE explica-lhe como é.

Deixa de fumar? Ó senhor «engenheiro» Sócrates! Mas o senhor fumava? Eu pensava que era um grande atleta, capaz de correr meias maratonas (ou por lá perto) e não dispensar umas corridinhas em calções, nem que fosse na Rússia, em plena Praça Vermelha. Afinal, era só para a rapaziada pensar que estava a ser governada por um tipo bestial e sem vícios de qualquer natureza. Olha quem…

Faça-me um favor – e ao país: não deixe de fumar, pode ser? Fume muito, muitos maços por dia e, se possível, vários cigarros de cada vez. Aos três e aos quatro. Fume, satisfaça o vício, encha-se de nicotina e alcatrão, intoxique-se, envenene-se sem remédio. Se o fizer, estará a prestar, de facto – e pela primeira vez – um verdadeiro serviço a Portugal e aos portugueses.

A sério: de tudo isto, o que fica, então, não será a transgressão em si mesma, coisa que se resolvia com a multa, e pronto. Isto é: coisa que se resolvia com dignidade. Mas não: o que fica é o retrato do carácter defeituoso de Sócrates, capaz de recorrer à mentira grosseira (fartinho de saber que não podia fumar onde fumou estava ele…) para salvar a pele e, ainda por cima, não ter o senso do ridículo suficiente para ter evitado aquela de ir deixar de fumar. Como disse – e bem – Marcelo Rebelo de Sousa na RTP, afinal Sócrates não terá deixado de fumar pela única razão válida para o efeito, ou seja, porque o fumo faz mal à saúde, mas porque foi apanhado em falso. E isto, meus amigos, é estupidez chapada.

Mas deitemos esta beata fora e vamos a outras – às verdadeiras – malfeitorias do «engenheiro». Um dos boys de estimação do PS, o doutor Vítor Constâncio, promoveu, por mérito, um quadro do Banco de Portugal que está de licença sem vencimento (leia-se: a amanhar a vidinha noutro lado) há para aí uns oito anos. É a política do regabofe para a aristocracia reinante, a par da política de contenção para a plebe. Haja dinheiro para a boyada, que o resto logo se vê.

Entretanto, as idas a Cuba de centenas de portugueses, para serem operados às cataratas, estão a pôr os nervos em franja a certos sectores da nossa distinta sociedade. Pula o senhor Bastonário da Ordem dos Médicos. Uiva o senhor que diz representar os médicos oftalmologistas. Grasnam alguns senhores deputados nos seus poleiros na Assembleia da República. Murmura qualquer coisa incompreensível a balbuciante ministra da Saúde.

Parece que agora todos têm, afinal, solução para os milhares de portugueses que esperam por uma primeira consulta ou por uma operação que lhes devolva uma visão capaz – ou impeça a cegueira.

Mas onde andavam, nas últimas décadas, estas aves raras, estas hienas de jardim, estas rãzinhas de pântano? Se já havia soluções, porque não as aplicaram em tempo oportuno? Na ânsia de lutarem pelos seus privilégios – uns – ou esconderem a sua insensibilidade e incompetência – outros – não percebem suas excelências que apenas estão demonstrar ao país que o que sempre os animou não foram os interesses reais da população, mas outros desígnios nada confessáveis. Estão cegos de raiva, é o que é.

Depois disto, só os cegos de espírito é que não viram que interesses se movem à nossa volta, mesmo em áreas tão sensíveis como a Saúde e, dentro nela, numa das mais sensíveis e dramáticas vertentes: manter a luz dos olhos. E se já sabíamos que esta gente não tem alma, isso agora ficou provado. Ou por outra: também vimos estes reizinhos na sua repugnante nudez.

Mas ao mesmo tempo que o país se deixava cegar no meio da baforada de fumo que o senhor «engenheiro» expeliu, os combustíveis voltaram a aumentar. Agora, aumentam todos os dias – ou quase. Atrás disso, tudo aumentará. As petrolíferas, que também vêem aumentar fabulosamente os seus lucros, não sofrem nada com os aumentos. Pelo contrário: só arrecadam. O governo, idem, idem, aspas, aspas. Depois, note-se que o senhor presidente da Galp acompanhou o senhor «engenheiro» na sua viagem à Venezuela. São ovos do mesmo cesto. E, curiosamente, ficámos a saber, pela boca desse cavalheiro que administra a Galp, que a culpa da subida de preços – disse ele – é do «Mercado».

Assim sendo, daqui proponho que acabemos com essa coisa das eleições e dos governos, das constituições e dos parlamentos. O Mercado é que decide da nossa vida, e está tudo dito. Ora, como o Mercado é assim uma espécie de ser divino, que todos sabem que existe, mas ninguém viu, então está bem. Siga o baile, e haja muita fé… no tal Mercado.

Mas cá para mim, uns dia descobriremos que, disfarçados atrás do Mercado, também andam uma data de reizinhos a comer à grande e à francesa. Todos nus, também. Como veremos, no dia em que os agarrarmos pelas goelas.

Mas, para isso, é preciso ter testículos, que é coisa que vai faltando ao bom povo português…

5.03.2008

Sobre os donos dos homens


Eles
- do arroz, dos cereais e de outras «minas»...

Enquanto o arroz sobe, contribuindo para o alastrar a fome que por aí existe, o destaque não pode ir para a invasão de esquadras policiais por bandos de marginais. Realmente, por muito que esta lixeira se pareça, cada vez mais, com uma república das bananas, e por muito significativa do deboche a que chegámos sob o consulado do «engenheiro» Sócrates, esta novidade do assalto a esquadras policiais nada é comparado com a falcatrua monumental da «crise do arroz». Será, por isso, sobre o que ela significa, que falaremos hoje.

Então, de repente, os senhores que mandam na economia, que fazem e refazem as crises – e as gerem de acordo com as suas conveniências – (e daqui para diante designados por Eles), inventaram a questão do arroz. Em consequência, o seu preço disparou. Parece que, em Portugal, já subiu 16%.

Quem ganha? Os grandes produtores, os grandes armazenistas, os grandes distribuidores. E – é claro! – os governos, já que o IVA, mesmo mínimo, passa a produzir uma colecta maior.

Quem perde? Não vale a pena dizer. Todos sabemos quem perde.

Os mecanismos são sempre os mesmos. Eles começam por falar em quebras de produção, em diminuição drásticas das reservas estratégicas (coisas que o cidadão comum não sabe bem o que é – e, se souber, nunca poderá confirmar), lança-se o fantasma do racionamento, sugere-se o espectro da fome, e aí está o baile armado. Quando o produto escasseia, por um dia ou dois, nas prateleiras, o rastilho começa a arder. Em pânico, o consumidor procura precaver-se. Já não pensa no preço, mas em açambarcar. Paga o que pode e o que não pode, mesmo que, depois, o arroz crie bicho na prateleira da despensa. O arroz, esse é que nunca mais voltará ao preço antigo.


A «mina» do petróleo

Se pensarmos um pouco, perceberemos que o mesmo se passa com a chamada crise do petróleo e a respectiva escalada de preços. Porque é que o petróleo estava, há poucos anos, a 30 dólares (e já se dizia que estava caríssimo), e agora, que está a cento e muitos dólares, se desce uns cêntimos já se diz que ficou barato? Porque é, afinal, que o petróleo sobe?

Eu recordo algumas das razões por Eles apontadas:

- Ou é porque estamos na época dos furacões no Golfo do México;

- Ou é porque as reservas dos EUA estão abaixo do previsto;

- Ou é porque a Nigéria vive dias de instabilidade;

- Ou é porque a vaga de frio nos EUA levou a um aumento do consumo;

- Ou é porque a vaga de calor nos EUA levou a um aumento do consumo;

- Ou é pela crise no Médio Oriente;

- Ou é pelo aumento de procura nos países emergentes, como a China e a Índia;

- Ou é porque o Irão pode estar a construir um reactor nuclear;

Ou é porque a Coreia do Norte disparou um míssil terra-ar;

- Ou é porque os EUA ameaçam invadir outro país qualquer (produtor de petróleo, está bem de ver);

- Ou é porque houve mais uma ameaça terrorista (mesmo que anteriores nunca se tenham confirmado);

- Ou é porque há greve dos trabalhadores num determinado complexo extractivo;

- Ou é porque as reservas mundiais não são tão consideráveis como se julgava.

Enfim. Eles têm sempre uma justificação. Ou várias. Esgotadas todas elas, um dia dirão que é petróleo que tem vontade própria e que só aceita ser extraído se o preço do barril aumentar todos os dias. Mas a única, a verdadeira, aquela que nunca nos é dita, é esta: o preço do petróleo aumenta porque Eles querem. Eles – e não deus, nem o diabo, nem o clima, nem qualquer outro factor humano ou natural.

O petróleo aumenta porque isso é do interesse das grandes empresas petrolíferas e dos seus governos. Ponto final.

Voltando à questão do arroz e dos cereais

Eles não dizem que a produção agrícola mundial foi, em 2007, de 2,3 mil milhões de toneladas de cereais, ou seja, mais 4% do que no ano anterior. Nem que, se desde 1961, a produção mundial de cereais triplicou, a população apenas duplicou. Sendo assim, que razões existem para esta aparente escassez de cereais e para a sua vertiginosa subida de preço? Sem dúvida, que as gritantes desigualdades que assolam o planeta, tanto mais imorais quanto é certo que os povos das regiões que mais riqueza produzem acabam por ser, em regra, quem menos delas beneficiam. Mas também é certo que essas carências são cada vez mais acentuadas por uma coisa maquiavélica e nefanda que por aí anda há cerca de três décadas, e que dá pelo nome de globalização neoliberal. Ou seja: uma globalização feita por Eles e à medida d’Eles.

Então, o que está a acontecer é que bens essenciais ao desenvolvimento da sociedade humana (caso do petróleo) e ao seu bem-estar e sobrevivência (caso dos cereais e dos bens alimentícios, em geral) estão entregues ao sistema especulativo do quem-dá-mais, brincando-se, deste modo, com a vida – no sentido literal do termo – de milhões de seres humanos.


Biocombustíveis: a nova «mina»

Na verdade, o trigo e outros cereais, que deveriam servir para alimentar as pessoas, estão agora a ser vistos como fontes de produção de combustíveis – os chamados biocombustíveis – tendo em vista uma alternativa ao petróleo, já que, apesar das recentes descobertas de novas jazidas – as mais importantes das quais no Brasil – ele, o petróleo, não passa de um recurso finito.

Poderão alguns dizer que, sendo o petróleo um recurso natural não renovável, que fontes energéticas alternativas devem ser encontradas, no sentido de garantir que as bases civilizacionais existentes possam ser mantidas. De acordo. Mas já não estarei de acordo se me disserem que esses recursos, necessários para a sobrevivência, bem-estar e progresso de toda a humanidade, devem estar na posse de alguns (os tais Eles), e assim entregues à lógica do regateio, do quem-dá-mais… e por aqui me sirvo.

Em primeiro lugar, porque o planeta não é d’Eles, mas de todos o que o habitam; em segundo lugar, porque não são Eles, mas outros milhões de seres humanos, que produzem, extraem, transformam, contabilizam, transportam e distribuem esses bens.


Eles, a água e o ar

Ora, se esta lógica não se inverter, um dia destes teremos que Eles, como donos disto tudo – das riquezas naturais e dos meios de produção – farão com a água o que estão a fazer com petróleo e o arroz e outros cereais. Ou a pagamos ao preço que a sua gula infinita ditar, ou morreremos à sede.

(Aliás, esta experiência já foi encetada em vários países, sendo, neste preciso momento, um dos sonhos do Partido Socialista e da restante direita, recordando-se, a propósito, que Sócrates vem, desde os seus tempos de ministro do Ambiente, dando passos seguros nesse sentido, designadamente com a criação das empresas multimunicipais e a ideia de privatizar todos os serviços de captação e distribuição de água).


Por isso, cantava o Zeca que Eles comem tudo. Falta acrescentar que também bebem (ou querem beber) tudo.

E quando for possível controlar a própria atmosfera, Eles também quererão ser donos do ar. Então, nada faltará para serem nossos donos, tendo sobre nós direitos de vida e de morte.

Como, de certo modo, já têm.