3.06.2007

O negócio da morte

Um dia, disse a estes microfones, meio a sério, meio a brincar, que só faltava ao governo privatizar o ar e os cemitérios. Se, no que respeita ao ar, a coisa não avança porque ainda não há tecnologia que lhes permita fazê-lo, já na questão dos cemitérios – pensava eu – acabaria por prevalecer um pouco de decoro e de respeito por quem leva os seus mortos a enterrar e não vai, propriamente, realizar uma transacção comercial. Acreditava que, no país onde nascemos, teríamos reservado – todos nós – o nosso último palmo de terra, uma terra que, por não ser de ninguém, pudesse ser de todos.

Um cemitério, como eu sempre o entendi, é um espaço público destinado a garantir-nos o último dos direitos: o de não ter o corpo lançado aos bichos e onde os entes queridos possam recolher-se e mitigar a sua dor através dos rituais que o luto exige. Um cemitério, para mim – e, certamente, para todos os que me ouvem – é a outra ponta de um linha que, um dia, começou na cama de uma maternidade, competindo ao Estado (que somos todos nós) garantir que possamos nascer, viver e morrer com a dignidade devida a um ser humano (independentemente da sua capacidade financeira), que foi para isso que contribuiu com o seu trabalho e os seus impostos.

A actual gestão dos cemitérios, entregue às câmaras municipais e juntas de freguesia, garante, de forma humana e solidária, esse imperativo decorrente da nossa efémera existência: o de termos o chamado lugar de eterno descanso. Aliás, a gestão dos cemitérios é uma das competências e responsabilidades históricas do poder autárquico, única forma, de resto, de a todos ser garantida uma morada final. Defendo, como homem de esquerda que me prezo de ser, que compete à sociedade que constituímos e que sustentamos – e a que chamamos, de forma abreviada, Estado – compete, dizia eu, a essa sociedade prestar a todos os cidadãos protecção e cuidados que, começando na assistência pré-natal, o devem acompanhar em todas as situações decorrentes do simples facto de ter nascido. Falo, naturalmente, do que é essencial e indispensável a uma vida saudável e digna, como seja o direito à saúde, à educação, ao trabalho suficientemente remunerado, à habitação, a alimentar-se e, naturalmente, à mais inevitável de todas as situações: a morte.

Defendem as pessoas de direita – e defendem-no, hoje em dia, os neoliberais, de que a camarilha socialista no poder é o mais eficaz representante – que tudo deve ser transformado num negócio, existindo o Estado apenas para cobrar os impostos às populações, impostos que, depois, são aplicados apenas para a concretização de investimentos que o sector privado recuse, por não serem lucrativos.

Como as coisas se estão a pôr, um dia destes todo o país, das florestas às praias e aos rios, do ar às águas das nascentes, do subsolo às nuvens, dos caminhos, das praças e das ruas e avenidas aos mais impensáveis recursos naturais, até ao espaço onde havemos de cair mortos, tudo – mas tudo, literalmente – será um imenso espaço e objecto de negócio, isto é, o país será propriedade absoluta de grupos capitalistas, uma espécie de roça gigantesca onde nós, os miseráveis indígenas, teremos, como única razão de existir, a de contribuirmos para a maximização dos lucros dos nossos senhores.

Curiosamente, a Associação Nacional de Municípios já manifestou a sua concordância com a intenção de governo de entregar a gestão dos cemitérios a empresas privadas. Compreende-se. Mas, se com essa transferência, o cheque dos autarcas também diminuísse, dado que passariam a ter menos trabalho e responsabilidades, em vez de acordo teríamos, certamente, inflamadas manifestações de indignação.

Isto tem a ver com uma pouca vergonha maior e mais ampla, que é as autarquias se estarem a libertar das suas responsabilidades de servidores públicos, deixando que os serviços essenciais, que são a razão da sua existência – e das verbas que recebem do poder central – sejam paulatinamente trespassados para a gula dos privados, como acontece já em muitos municípios com o tratamento dos lixos e das águas residuais – vulgarmente conhecidas por águas dos esgotos – e com o abastecimento de água, tornando estes serviços cada vez piores e mais caros.

Nunca a expressão «É fartar, vilanagem!», se aplicou tão bem em Portugal. É que, apesar de se libertarem das suas responsabilidades fundamentais – isto é: de fazerem cada vez menos – continuam a consumir recursos e a endividar-se como se fizessem o mesmo que já faziam – ou mais.

Aqui chegados, talvez se imponham duas perguntas: se a recolha e tratamento dos lixos já está, em muitos municípios, entregue a privados; se a captação e distribuição de águas idem, idem, aspas, aspas; se já existem empresas multimunicipais (entenda-se: prontas a serem privatizadas) que fazem o tratamento das águas residuais; se a gestão urbanística depende dos favores e da vontade dos urbanizadores – e da sua capacidade em untarem e «financiarem» as mãos e os partidos certos – então, para que servem, nos tempos que correm, as câmaras municipais? Só para gastarem recursos como se fizessem o que já não fazem, e garantir belas carreiras e confortáveis reformas aos senhores autarcas?

Uma coisa é certa: a privatização dos serviços públicos representa, em última análise, a venda de cada um de nós a um capitalista qualquer.

Uma nota final. A Câmara Municipal de Almada ainda é, nos actos e nas palavras, a mais honrosa excepção ao que por aí se vai fazendo – ou consentindo. Ela defende, como autarquia – e verdadeira autarquia de Abril – a sua população da fúria devoradora dos interesses privados.

É que nisto, como em tudo, há sempre alguém que resiste…

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