3.16.2007

Entregues à bicharada

Leio no Diário de Notícias:

«Privados abrem clínicas onde Governo fechou centros de saúde

Três grupos privados e a União das Misericórdias Portuguesas são as entidades privadas e da rede social que já puseram em marcha um ambicioso programa de abertura de unidades de saúde que pretendem ocupar o vazio deixado pelo Estado ao fechar urgências, centros de atendimento permanente e maternidades.

Mirandela, Espinho e Cerveira são as três localidades onde já está prevista a abertura de novas unidades de saúde, depois de o Ministério ter anunciado a intenção de desinvestir. Enquanto tal não se verifica, na Mealhada, a Misericórdia local inaugurou recentemente o serviço de urgências, assim como em Vila do Conde – cujas urgências deverão encerrar, segundo o previsto pelo relatório técnico do Ministério da Saúde – e onde também funciona há um mês o atendimento permanente na Misericórdia local.
As misericórdias têm sido as mais activas instituições a procurar colmatar as lacunas da rede pública. Na continuação do que tem sido a filosofia destas instituições, novos serviços de saúde, para além dos que já foram anunciados, poderão surgir nas áreas onde o ministério encerrar valências. A posição destas instituições da rede social com uma longa presença no sector da saúde, depende também do que vier a ser o futuro do serviço público em Portugal.»

E, mais à frente, diz o DN:

«A banca é, actualmente, dos sectores da actividade económica mais activos em investimentos no domínio da saúde. E está, para já, presente em todas as anunciadas intenções, por parte de grupos privados, de investir em zonas que o Ministério da Saúde se prepara para deixar. É o caso dos privados da Hospor, detido pelo grupo BES Saúde, e da Rede Nacional de Saúde Privada, que estão no terreno para ocupar o espaço que o ministério deixa vago, respectivamente, no Vale do Rio Minho e em Mirandela.Outras empresas privadas poderão também vir a beneficiar desta nova política no Ministério da Saúde, como é o caso do grupo Mello, que tem previsto, ainda este ano, abrir uma clínica em Torres Vedras "com atendimento permanente". Esta é uma cidade cujo hospital deverá receber um acréscimo significativo de afluência, em virtude do encerramento das urgências de Peniche. O que poderá, por isso, suscitar procura por um serviço mais diferenciado e personalizado como o que o grupo privado pretende oferecer».

Isto li eu no DN de ontem. E não vale a pena acrescentar mais nada, pois na singela objectividade da notícia está desmontada toda a política do Governo a que chamam socialista e, por alcunha (certamente irónica), de esquerda. Uma política que mete no bolso do poder económico aquilo que retira ao bolso e à saúde das populações. E, neste caso, que obriga os portugueses a pagar aos senhores capitalistas, aquilo que já pagaram com os seus impostos, ou seja, o direito a uma Saúde «tendencialmente gratuita», como determina a Constituição da República Portuguesa.

Também aqui no Seixal, o governo decidiu encerrar os SAPs de Amora e de Corroios, atirando para o Centro de Saúde do Seixal – a rebentar pelas costuras – e, automaticamente, para o Garcia de Orta (que já nem costuras tem) a responsabilidade de satisfazerem, no campo da urgência, uma população que ronda, só naquelas duas freguesias, as cem mil pessoas.

Curiosamente, as populações de Amora e Corroios não fizeram aqui o que vimos fazer por esse país fora, onde as pessoas, lideradas pelos seus eleitos autárquicos (alguns deles militantes do próprio PS, como foi o caso de Valença) encheram ruas e praças e forçaram o senhor ministro da Saúde a um recuo apressado. O que aqui vimos, foi apenas um triste arremedo de manifestação, uma coisa chocha e desenxabida, aparentemente feita para que não se dissesse que não se fazia nada. Na verdade, nem outra coisa seria de esperar de uma acção convocada tarde e a más horas, com poucos meios e mal divulgada, e onde, principalmente, não houve o «toque a reunir», o «rebate dos sinos» agitados por uma autarquia a quem competia, antes de mais e acima de tudo, colocar a faca nos dentes e vir para a rua dar a cara e a voz em defesa dos serviços públicos e das suas populações.

Realmente, não posso deixar de considerar estranho (no mínimo) que a autarquia e as forças políticas predominantes neste concelho não tenham assumido um papel activo e dinamizador das populações na defesa de equipamentos e serviços essenciais à sua qualidade de vida, ao seu bem-estar e à sua segurança. No entanto, pergunto-me se devo estranhar ou, pelo contrário, devo concluir que este facto mais não é que a consumação do divórcio que há muito se esperava, dado que os políticos locais são alérgicos a tudo o que cheire a misturas com as chamadas massas populares, das quais se têm progressivamente afastado.

Fale-se-lhes em reuniões, encontros, simpósios, seminários e outras iniciativas de salão, com as individualidades muito bem perfiladas na mesa – e cujas fotos, sempre iguais umas às outras, constam, obrigatoriamente, das páginas do Boletim Municipal – e aí os temos a botar discursos (tal como as fotos, também sempre iguais, monocórdicos, repetitivos, gastos, bacocos e pirosos), falando em novas centralidades, desenvolvimento sustentável, planos estratégicos disto e daquilo, e outra vez o desenvolvimento (mas desta vez sustentado, em vez de sustentável), mais a sustentabilidade e a sustentação. Fale-se-lhes em criar encargos para as próximas décadas (quem vier atrás que se desenrasque, não é verdade?) com a construção dos novos Paços do Concelho e do Parque Oficinal, ou em dotar a vereação com viaturas novas, mas não se lhes fale em obra na rua, no espaço público, que para isso não há cheta e, por isso, é pouca, ou nula. Será isto o tal desenvolvimento sustentado?

Mas a malta é que vai sustentando tudo isto, com novas taxas para o tratamento dos esgotos, destinadas a reanimar os cofres municipais, exauridos por uma política que, em meia dúzia de anos, fez duplicar o quadro de pessoal da Câmara, designadamente com gente – muita gente – para os gabinetes, técnicos disto e daquilo, assessores, adjuntos, conselheiros e, principalmente, conselheiras.

Postas as coisas assim – e é assim que estão – entende-se que estes eleitos fujam do contacto com as populações como o diabo foge da cruz, já que com elas se sentem em dívida. Ou que todos os «contactos» (entre aspas, claro) só se façam em circuito fechado, sendo a «população» (também entre aspas) maioritariamente composta por outros eleitos, mais os tais técnicos, assessores, adjuntos, conselheiros e conselheiras.

E também se compreende que uma população que não vê – nem se revê – nos seus eleitos, que deles só tem notícia pela factura da água e pelas alcavalas que ela esconde – e tudo o mais é uma triste e silenciosa ausência – já não possa responder presente. Principalmente quando o chamamento é nulo. Ou quase.
E assim vamos ficando, cada vez mais, entregues à bicharada.

3.06.2007

O negócio da morte

Um dia, disse a estes microfones, meio a sério, meio a brincar, que só faltava ao governo privatizar o ar e os cemitérios. Se, no que respeita ao ar, a coisa não avança porque ainda não há tecnologia que lhes permita fazê-lo, já na questão dos cemitérios – pensava eu – acabaria por prevalecer um pouco de decoro e de respeito por quem leva os seus mortos a enterrar e não vai, propriamente, realizar uma transacção comercial. Acreditava que, no país onde nascemos, teríamos reservado – todos nós – o nosso último palmo de terra, uma terra que, por não ser de ninguém, pudesse ser de todos.

Um cemitério, como eu sempre o entendi, é um espaço público destinado a garantir-nos o último dos direitos: o de não ter o corpo lançado aos bichos e onde os entes queridos possam recolher-se e mitigar a sua dor através dos rituais que o luto exige. Um cemitério, para mim – e, certamente, para todos os que me ouvem – é a outra ponta de um linha que, um dia, começou na cama de uma maternidade, competindo ao Estado (que somos todos nós) garantir que possamos nascer, viver e morrer com a dignidade devida a um ser humano (independentemente da sua capacidade financeira), que foi para isso que contribuiu com o seu trabalho e os seus impostos.

A actual gestão dos cemitérios, entregue às câmaras municipais e juntas de freguesia, garante, de forma humana e solidária, esse imperativo decorrente da nossa efémera existência: o de termos o chamado lugar de eterno descanso. Aliás, a gestão dos cemitérios é uma das competências e responsabilidades históricas do poder autárquico, única forma, de resto, de a todos ser garantida uma morada final. Defendo, como homem de esquerda que me prezo de ser, que compete à sociedade que constituímos e que sustentamos – e a que chamamos, de forma abreviada, Estado – compete, dizia eu, a essa sociedade prestar a todos os cidadãos protecção e cuidados que, começando na assistência pré-natal, o devem acompanhar em todas as situações decorrentes do simples facto de ter nascido. Falo, naturalmente, do que é essencial e indispensável a uma vida saudável e digna, como seja o direito à saúde, à educação, ao trabalho suficientemente remunerado, à habitação, a alimentar-se e, naturalmente, à mais inevitável de todas as situações: a morte.

Defendem as pessoas de direita – e defendem-no, hoje em dia, os neoliberais, de que a camarilha socialista no poder é o mais eficaz representante – que tudo deve ser transformado num negócio, existindo o Estado apenas para cobrar os impostos às populações, impostos que, depois, são aplicados apenas para a concretização de investimentos que o sector privado recuse, por não serem lucrativos.

Como as coisas se estão a pôr, um dia destes todo o país, das florestas às praias e aos rios, do ar às águas das nascentes, do subsolo às nuvens, dos caminhos, das praças e das ruas e avenidas aos mais impensáveis recursos naturais, até ao espaço onde havemos de cair mortos, tudo – mas tudo, literalmente – será um imenso espaço e objecto de negócio, isto é, o país será propriedade absoluta de grupos capitalistas, uma espécie de roça gigantesca onde nós, os miseráveis indígenas, teremos, como única razão de existir, a de contribuirmos para a maximização dos lucros dos nossos senhores.

Curiosamente, a Associação Nacional de Municípios já manifestou a sua concordância com a intenção de governo de entregar a gestão dos cemitérios a empresas privadas. Compreende-se. Mas, se com essa transferência, o cheque dos autarcas também diminuísse, dado que passariam a ter menos trabalho e responsabilidades, em vez de acordo teríamos, certamente, inflamadas manifestações de indignação.

Isto tem a ver com uma pouca vergonha maior e mais ampla, que é as autarquias se estarem a libertar das suas responsabilidades de servidores públicos, deixando que os serviços essenciais, que são a razão da sua existência – e das verbas que recebem do poder central – sejam paulatinamente trespassados para a gula dos privados, como acontece já em muitos municípios com o tratamento dos lixos e das águas residuais – vulgarmente conhecidas por águas dos esgotos – e com o abastecimento de água, tornando estes serviços cada vez piores e mais caros.

Nunca a expressão «É fartar, vilanagem!», se aplicou tão bem em Portugal. É que, apesar de se libertarem das suas responsabilidades fundamentais – isto é: de fazerem cada vez menos – continuam a consumir recursos e a endividar-se como se fizessem o mesmo que já faziam – ou mais.

Aqui chegados, talvez se imponham duas perguntas: se a recolha e tratamento dos lixos já está, em muitos municípios, entregue a privados; se a captação e distribuição de águas idem, idem, aspas, aspas; se já existem empresas multimunicipais (entenda-se: prontas a serem privatizadas) que fazem o tratamento das águas residuais; se a gestão urbanística depende dos favores e da vontade dos urbanizadores – e da sua capacidade em untarem e «financiarem» as mãos e os partidos certos – então, para que servem, nos tempos que correm, as câmaras municipais? Só para gastarem recursos como se fizessem o que já não fazem, e garantir belas carreiras e confortáveis reformas aos senhores autarcas?

Uma coisa é certa: a privatização dos serviços públicos representa, em última análise, a venda de cada um de nós a um capitalista qualquer.

Uma nota final. A Câmara Municipal de Almada ainda é, nos actos e nas palavras, a mais honrosa excepção ao que por aí se vai fazendo – ou consentindo. Ela defende, como autarquia – e verdadeira autarquia de Abril – a sua população da fúria devoradora dos interesses privados.

É que nisto, como em tudo, há sempre alguém que resiste…