2.27.2009

Cavaco Silva - pedir-lhe a lua


Porque me custa que um homem tido por íntegro - e que é Presidente da República - se cale perante as diatribes de um homem e de um partido (Sócrates e o PS) que, todos os dias afundam o país num lodaçal de escândalos e penúria, tive a veleidade de a ele me dirigir, pedindo-lhe que me dissesse de sua justiça. Sei que lhe pedi a lua, mas pedir não é crime. Eis a carta que lhe enviei.
Exmo. Senhor
Presidente da República


Tenho ouvido, por várias vezes, V. Exa. apelar aos portugueses para que enfrentem as dificuldades com coragem e optimismo, com espírito positivo, lutando contra as adversidades sem queixumes e desânimos, rematando, quase sempre, com a conclusão de que só assim, com esse espírito, se conseguirá vencer a crise e ultrapassar os tempos difíceis que vivemos e, principalmente, os que aí vêm.

Deixe-me dizer-lhe que oiço palavras e apelos como esses há muitos anos. Ouvi-os de Salazar, ouvi-os de Marcelo Caetano, ouvia-os de Mário Soares, ouvi-os de todos os outros que, até hoje, se têm sentado nos cadeirões de Belém e de S. Bento. De V. Exa., inclusive, quando lhe foram confiadas as rédeas da governação, aqui há uns anos.

Compreendo que, ao falar em dificuldades, não possa V. Exa. enumerar cada uma delas – e muitas são, como sabemos – pelo que a abstracção poderá, com alguma boa-vontade, justificar-se. Compreendo, também, que no curto espaço de que dispõe para falar ao país, não possa explicar-nos a razão dessas dificuldades, as suas causas próximas e remotas. Ou – quem sabe? – talvez prefira não as enumerar, pois isso negaria, eventualmente, a visão oficial sobre os problemas existentes, o mesmo é dizer-se: poria em causa o sistema que lhe permitiu, um dia, ser primeiro-ministro, e permite, agora, ser presidente da República. Precisando: poria em causa a ideologia dominante e o sistema económico que lhe está na génese.

Talvez por isso, quando V. Exa. fala em problemas concretos como o desemprego, a larga franja de famílias carenciadas, as desigualdades sociais e outras chagas do género (poderia, mesmo, falar em miséria, que não lhe ficaria nada mal fazê-lo), fica-se sempre a pensar, das suas palavras, que estes problemas são, em parte, fruto do acaso, coisas de combustão espontânea ou, quando muito, consequência de inocentes e pontuais erros da governação. E que, para serem vencidos, basta que para aí uns quantos milhões de portugueses se deitem ao trabalho com unhas e dentes, de cara muito alegre e optimismo a deitar por fora, para que daqui a não sei quanto tempo (dias, semanas, meses ou anos?), a crise esteja vencida.

Se eu não tivesse já os anos de vida que tenho, diria que talvez desse lado, do lado de quem detém o poder, as coisas possam ser vistas assim. Que talvez possuísse V. Exa. conhecimento de factos que escapam ao cidadão comum e que, à luz deles, se compreenda o que nos acontece, enquanto povo. Mas, tendo eu já passado, como disse atrás, por Salazar, Marcelo, Soares e todos quantos, depois disso, governaram Portugal, é justo dizer que deste lado, do lado dos que sofrem a vida dia-a-dia, esses factos que V. Exa. conhecerá, sejam eles quais forem, pouco servem para explicar – e, muito menos, resolver – aquilo que nos fere. É que, senhor Presidente, as «razões de Estado» são razões de costas largas, alheias ao bem-estar social e, apenas, convenientes para aqueles a quem elas se ajustam ou encobrem.

Ou talvez – e também é compreensível que assim se possa pensar – não queira, ou não possa, V. Exa. dizer-nos tudo o que sabe e deveria, pois outros diriam outras coisas e, abertos os armários onde se guardam todos os segredos (os de Estado e outros, de várias cores e tamanhos), lá se iria de vez a «ordem natural das coisas» em que vivemos. Ou nos forçam a viver.

Posto isto, é tempo de perguntar a V. Exa. se posso traduzir as suas palavras de estímulo e encorajamento, como um apelo ao sacrifício, a um labor cego e alheio ao que se passa à volta, a uma entrega gratuita e acéfala aos desígnios da economia, a uma indiferença de robot face ao que possa acontecer ao fruto desse labor, sem pedir contas a ninguém, sem capacidade crítica, sem exigir a justa recompensa e a mais que justa repartição da riqueza criada?

Quererá, segundo parece, dizer V. Exa., que bastar-nos-á o optimismo e a entrega incondicional nas mãos do aparelho produtivo para, daqui a uns tempos, tudo estar melhor?

Por outras palavras: dependerá, na sua visão, a Pátria assim tanto de nós?

Não me atrevo a pensar que alguma vez estas dúvidas mereçam o esclarecimento do presidente da República, pelo menos enquanto o nosso sistema político e económico for o que é e, principalmente, enquanto os nossos políticos estiverem reféns uns dos outros e, todos eles, reféns da alta finança que a todos – e a tudo – controla.

Pede V. Exa., então, coragem, optimismo e determinação aos portugueses. Em suma: espírito de sacrifício, que eu, muito plebeiamente, poderia traduzir por muito trabalho e fé em Deus.

Entretanto, como sabe, senhor Presidente da República, para além dos trabalhadores, dos estudantes, dos reformados, dos desempregados (que já ultrapassam o meio milhão, só nos simpáticos números oficiais), das centenas de milhares de trabalhadores precários, dos que têm salários em atraso, enfim, do povo em geral, a quem, a sua mensagem é, inquestionavelmente, dirigida, existem outros portugueses que não dão pela crise e, pelo contrário, não só dela se têm aproveitado, como foram eles que, por procedimentos legais ou ilegais – mas sempre inegavelmente imorais – para ela contribuíram.

Saberá, com certeza, que os portugueses comuns a quem se dirige, incentivando-os ao optimismo e a mais trabalho – e ao trabalho a qualquer preço, (os que têm trabalho, claro) – ganham, em média, pouco mais de metade (55%) do que se ganha na zona euro? E que não é a eles – a nenhum deles – que se pode assacar culpas pela crise que aí está? Mas que os nossos estimados gestores, recebem, em média, mais 32% do que os americanos; mais 22,5% do que os franceses; mais 55% do que os finlandeses e mais 56,5% do que os suecos"? Sabia disto?

Que mensagem terá, então, V. Exa. para esta casta, que tão bem conhece, já que saltitam de governo em governo, deles para os conselhos de administração (muitos destas distintas figuras foram seus ministros e enriqueceram em pouquíssimos anos), acumulando benesses escandalosas, ordenados fabulosos, reformas de nababos, bastas delas reforçadas com novos ordenados e acrescidas mordomias? Que lhes pedirá?

Que dirá ao senhor governador do Banco de Portugal, como elemento integrante de uma estrutura que se atreve a estabelecer para si própria ordenados e regalias bastante superiores ao que o país mais poderoso do mundo – os EUA – se permite dar ao seu presidente da Reserva Federal?
Diga-me, pelo menos, se não se sente ultrajado por aquilo que, sendo legal, apenas porque o decidiu quem tinha poderes para tanto, não deixa de ser uma imoralidade monumental? Porque não admitir, então, à luz da disposição constitucional que considera todos os portugueses iguais perante a lei, poderem os trabalhadores, eventualmente através dos seus sindicatos, decidirem, de igual modo, o valor dos seus ordenados, pensões e demais regalias? Porque podem os senhores que governam e governaram o Banco de Portugal decidir quanto ganham, e o comum dos portugueses não? Não estaremos, aqui, perante um evidente vestígio de mentalidade feudal, segundo a qual aos amos eram conferidos direitos que aos servos eram negados? Enquadra-se esta situação no seu conceito de República e, principalmente, de Democracia? Parece que sim.

E parece que sim porque V. Exa. promulgou, apenas com um senão, o Código do Trabalho, onde se coloca, literalmente, a vida dos milhões de trabalhadores portugueses nas mãos dos seus empregadores. Em muitos casos, este aborto da democracia em curso chega a envergonhar as disposições laborais dos tempos da ditadura que – embora me custe admiti-lo – nunca se atreveu a ir tão longe.

Entretanto, o país esboroa-se. Física e moralmente. A criminalidade multiplica-se, fruto das dificuldades económicas, da desmoralização reinante, do vale-tudo que a classe dominante tem como insígnia, e que já não consegue esconder. Casos como os do BPN e BPP são, como saberá, pontas de um icebergue global, e ilustram bem a quem estamos entregues.

Porque o clima é este, porque a lei da selva se instituiu como instrumento nacional, a pequena e a grande criminalidade confundem-se nos objectivos e só de distinguem nos métodos e nas punições. Mata-se – e, perante os factos, bem – o que assalta um banco, de fora para dentro; protege-se e branqueia-se os que os assaltam por dentro.

No meio desta barafunda, temos um primeiro-ministro que só o é porque estamos em Portugal e, como já disse anteriormente, a classe política, que se guerreia por aquilo a que o povo chama «tachos», «gamelas», ou «mesa do orçamento», protege-se quando se trata de limpar as nódoas do banquete onde todos convivem. É evidente que os casos que já vieram a lume, envolvendo o primeiro-ministro (dos quais o Freeport é apenas o mais estrondoso), só ainda não descambaram em exigências de demissão porque andam por aí muitas moedas de troca. Há armários cheios de esqueletos nas várias casinhas desta democracia pindérica, mas de acentuados traços sicilianos.

Que orgulho, motivação, esperança ou outra coisa qualquer pode ter um português para se dispor a salvar o seu país, quando sabe que ele não lhe pertence? Que está nas mãos de gente que, todos os dias, nos dá uma nova prova de falta de escrúpulos?

Diga-me, senhor presidente: acha que o caso da licenciatura de José Sócrates é uma cabala, uma manobra negra da oposição? Acha que o facto de José Sócrates ter mentido no documento que entregou na Assembleia da República e que, depois, viciou, lhe permite ser uma pessoa credível ou confiável para governar um país? E o facto de ter negado conhecer o professor que o passou a quatro disciplinas, quando se sabe que o mesmo senhor fez parte de um governo ao qual pertencia, para além de estar provado conhecê-lo, intimamente, de certas aventuras serranas?

Não acha, senhor presidente, que os processos, arquivados ou em curso (e, inexplicavelmente, escondidos há anos numa qualquer gaveta milagrosa), onde o nome do primeiro-ministro e do seu tal professor da UNI constam, por serem coisas reais e não cabalas e campanhas negras, devem ser tidos em linha de conta para se avaliar a personalidade de quem governa o país e, em último caso, deveria ser um exemplo para todos?

Acha que a farsa do computador Magalhães, fruto falso de neurónios nacionais (trata-se de um produto da Intel, disfarçado de azul), que rendeu, sem concurso, milhões de euros a uma firma ligada ao PS, com sérios problemas fiscais, dignifica e moraliza a nossa vivência colectiva?

Acha que é normal, decente e democrático um governo exercer pressões sobre a comunicação social – o último caso denunciado partiu do director do semanário SOL – para impedir que o país saiba os podres do governo e, em particular, do seu primeiro-ministro?

Acha próprio um país da União Europeia ser governado por um homem que escondeu, no seu currículo, ter feito parte de uma sociedade onde os outros três sócios (entre eles, Armando Vara, hoje administrador do BCP – e também licenciado num ápice pela UNI – e Fátima Felgueiras) acabaram condenados em distintos processos? E que o outro, Sobral de Sousa, foi condenado por práticas de falsificação?

Acha, ainda, dignificante para Portugal que o actual primeiro-ministro seja envolvido pela polícia nacional, pela polícia inglesa e por familiares seus num caso de corrupção, e que se assista, como única defesa do visado, ao lançamento de uma nuvem de fumo, que é a ridícula tese da cabala? Não configura todo o processo do Freeport algo de muito grave, suficientemente grave para um governante se demitir para permitir que a Justiça apurasse toda a verdade? Não disse, inclusive, V. Exa. que se trata – o caso Freepot – de uma questão de Estado? Ou tratou-se de uma frase sem significado?

Gostaria – mas sei que é pedir a lua – de o ouvir a propósito disto tudo. Gostaria, ainda mais, de nunca me ter sentido obrigado a escrever o que agora escrevi.

Porém, tenho a certeza de duas coisas:

a primeira, é que enquanto o país estiver nas mãos de quem está, todos os seus apelos aos portugueses serão inúteis;

a segunda, é que no dia em que este país for, realmente, uma democracia plena, de facto e de direito, ninguém precisará de apelos para cumprir o seu dever de cidadão e de patriota.

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