7.28.2009

Parlamento - um santo e virtuoso altar

Enquanto eles se divertem, bem pagos e com o futuro garantido,
a maioria dos portugueses vive com a corda na garganta.
O Parlamento e o Governo, ambos ao serviço do capital financeiro,
fingem que o Povo é a sua preocupação.
No final, o povo não passou de um pretexto
para a representação de uma farsa chamada Democracia.
A responsável palhaçada


Um conhecido activista dos direitos dos homossexuais, chamado Miguel Vale de Almeida, esteve, até há pouco, encostadinho ao Bloco de Esquerda. Homossexual assumido e orgulhoso daquilo a que chama opção (coisa discutível, pois parece-me que tudo se resume a uma embaraço biológico e não a uma qualquer opção, já que opção implica uma escolha consciente e praticável entre, pelo menos, duas possibilidades), passou os últimos anos a desancar ferozmente o PS e os seus dirigentes. Disse deles o que um feirante assanhado não diz dos inspectores da ASAE.
Agora, aceitou integrar as listas de candidatos do PS às legislativas. Traindo os bloquistas e concubinando-se com os seus antigos inimigos de estimação, a cujo piscar de olho maroto não conseguiu resistir, Vale de Almeida caiu, literalmente, nos braços de Sócrates. Enfim, La donna è mobile. Que sejam muito felizes, apesar de os dois terem ficado mal nesta fotografia nupcial. Mas que fazer? Nos últimos tempos o PS não acerta uma…


Ainda na senda das modernices, a Assembleia da República exaltou-se com as petições que ali chegaram, ao abrigo de um direito (por enquanto…) constitucional, especialmente com uma petição que pedia a suspensão da lei do aborto. Não exactamente pelo pedido em si próprio, mas pela linguagem utilizada. Não gostaram os senhores deputados – especialmente uma inflamada deputada do PS – que os cidadãos peticionários se atrevessem a chamar-lhes irresponsáveis e outras evidências, pois a Assembleia da República, como todos estamos fartos de saber, é um altar de santos imaculados. Santos e sábios. Sábios e trabalhadores. Trabalhadores e assíduos. Assíduos e competentes. Competentes e responsáveis. Responsáveis e eficazes. Especialmente eficazes.


É por serem tudo isto, que passam o seu tempo, de forma diligente, descomprometida, objectiva e solidária, a resolver – ou a obrigar o governo a resolver – os magnos problemas nacionais. Foi graças ao esforço destes briosos rapazes e raparigas, damas e cavalheiros – e espécies híbridas – que no Parlamento se desunham em intenso labor, que o desemprego desapareceu, que os ordenados e pensões foram fixados em níveis compatíveis com a dignidade inerente a qualquer ser humano e que se esfumaram os mais de dois milhões de pobres que aviltavam a nossa esplendorosa democracia. Foi graças a eles e à sua consabida responsabilidade e alto sentido dos deveres dos deputados, que os grandes vigaristas e pedófilos da nossa praça foram todos detidos, as forças de segurança prestigiadas, o inepto que governava o Banco de Portugal substituído por um indivíduo medianamente competente e que tem, pelo menos, um olho.
Deve-se, pois, a este grupo de sapientes e doutas criaturas, unidas na ingente tarefa de levantar hoje, de novo, o esplendor de Portugal, que o nosso país seja um caso de respeito no contexto europeu e um exemplo de como uma nação sem grandes recursos pode andar por aí de cara lavada e espinha direita. Que não seja uma anedota ou uma excrescência.


É graças a eles, enfim, que os governos emanados desta respeitável e santa casa, a Assembleia da República, conseguem ser eficientes e produtivos, pois os rapazes e raparigas, damas e cavalheiros – e produtos similares – que resfolgam de canseira nos estofos do hemiciclo, não os deixam pôr o pé em ramo verde, e logo cortam pela raiz qualquer iniciativa que não corresponda ao interesse nacional. Nada lhes escapa do que o governo faz ou queira fazer, seja coisa linear, seja de carácter duvidoso ou seja, sem a menor dúvida, uma pulhice descomunal.


Por isso, nada de tratar a Casa Mãe da nossa honrada democracia como uma casa de alterne ou um bordel, pois se o fosse nunca lá entraria, para confraternizar com deputados, alguém como o senhor Jorge Nuno Pinto da Costa. Ele é, só por si, um aval à respeitabilidade do Parlamento. Disse-o antes; repito-o agora com redobrada convicção.


Por isso, a Assembleia da República é o nosso sol. A nossa água. O nosso ar. O nosso porto de abrigo em tempo de borrasca, como essa crise que por aí anda. Ali, com ordenados miseráveis, reformas ainda piores, horários extensíssimos, disciplina férrea, assiduidade inquestionável, os rapazes e raparigas, as damas e os cavalheiros – e os deputados de outras espécies – que nós elegemos, não sossegam enquanto houver um único problema a afligir um português que seja.


É vê-los e ouvi-los, sempre que a televisão nos oferece aspectos do seu labor, como discutem os problemas com objectividade, sem se perderem em conversa fiada e discussões estéreis, sem risinhos parvos ou apartes de humor duvidoso, sem o menor galhofar circense. Pondo de lado eventuais interesses pessoais ou de grupo, apenas e unicamente atentos ao bem público, o que fazem – benza-os deus! – fazem-no com toda a elevação e mérito. Vê-se como só o país lhes interessa. E como só o povo povoa os seus pensamentos.


E de todo o manancial de benfeitorias que a legislatura agora terminada nos trouxe, quero saudar a mais fundamental para a felicidade dos portugueses, aquela que todos nós queríamos ver resolvida antes de qualquer outra. A Lei do Aborto. Peço perdão pela brutalidade da expressão, perfeitamente inadequada no caso em apreço. Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez. Assim é que se diz. O aborto é uma coisa brutal, bárbara, indigna. A interrupção voluntária da gravidez é uma coisa completamente diferente. É o mais sublime dos direitos humanos, o mais civilizacional avanço social e a peça que faltava para dignificar a mulher, colocando-a, definitivamente, em pé de igualdade com o homem.


E como já temos resolvidos todos os outros problemas, tais como o desemprego, a política de rendimentos e a distribuição da riqueza – as desigualdades sociais, em suma – as questões da segurança social, com a abolição das pensões infames, ou os velhos problemas da educação, da segurança pública, da saúde, da habitação e da cultura, faltam agora duas cerejas em cima deste festivo e glorioso bolo: o casamento entre indivíduos do mesmo sexo, e a lei da eutanásia. Mal os nossos responsáveis parlamentares resolvam estas duas magnas questões, faremos roer de inveja qualquer país do mundo.


E se me for permitido, só peço uma coisa. Não. Não vou pedir que os senhores deputados sejam sempre – e obrigatoriamente – convidados para todas as uniões gays que se realizarem no nosso país, salvo, claro está, se o enlace for mesmo entre parlamentares.


O que peço é que sejam eles próprios, responsavelmente, a testar a lei da eutanásia. Não é que eu seja contra a morte assistida. Era só para nós, contribuintes, termos a certeza de que a coisa funcionava...

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