3.31.2012

Seixal, Março de 2012


Café com moscas
- Conversa ao entardecer
- Oiça lá – interpelou-me o senhor Adérito, velho amigo que explora um café onde vou, de vez em quando, tomar a minha bica –, você acha que eu deveria aumentar o café, os bolos, a mini ou as sandes, só porque estou a ganhar cada vez menos?
Olhei para ele e encolhi os ombros.
- Sei lá, amigo Adérito. Você é que sabe as linhas com que se cose.

- Nem mais. Pois digo-lhe que se aos preços a que as coisas estão, eu já tenho a casa às moscas, se eu aumentasse um cêntimo, até as moscas fugiam.

Ri-me.

- Era o mais certo. Mas isso vem a propósito de quê? – perguntei.

- Leia aqui – disse ele, mostrando-me a primeira página do jornal que estava em cima do balcão.

- O estado está a perder receita ao ritmo de cinco milhões de euros por dia – li eu, em voz alta, como um menino bem-mandado.

- Sabe porquê?
- Tenho uma ideia. Mas já percebi que vai dar-me a sua versão.

- Vou, sim senhor – e sem me deixar respirar. - É porque estão a aumentar o preço daquilo que nós compramos. E, ao mesmo tempo, a ir-nos ao bolso com o aumento de impostos, congelamento de salários e cortes nos ordenados e pensões. Pensam que se benzem, mas esmurram o nariz. E como o desemprego a aumentar, então nem lhe conto.

- Claro, não há dinheiro, não se compra – concluí eu, desnecessariamente.

- Se eu vendia sessenta bolos, aqui há um ano, e agora não chego a vender uma dúzia, e se o mesmo se passa em todos os cafés, que pensa você que aconteceu às fábricas dos bolos?

- Fabricam menos, vendem menos, está claro…

- E despediram pessoal. E compram menos açúcar, menos farinha, menos leite. Logo, aumenta o desemprego e paga-se menos IVA, menos IRC e assim por diante.

- E o que se passa consigo, passa-se com todo o comércio, com toda a indústria, com a agricultura e com as pescas – acrescentei eu, como se estivesse a dar-lhe uma novidade.

- Já que fala de pescas. Ouvi, há dias, na televisão, que importamos mais de sessenta por cento do peixe que comemos.

Resolvi armar-me em engraçado.

- Pois, mas aí coitados, não há volta a dar. Não temos mar…

- Pois não. São eles que governam o país, mas nunca têm culpa de nada. Nem sequer dos tratados e dos acordos que assinam. Nunca são eles, são sempre os que estavam antes deles. Os que estão agora é que garantem que vão endireitar isto. Como se não fossem todos farinha do mesmo saco, como se não lessem todos pela mesma cartilha.

- Não acredita que estes vão endireitar isto, senhor Adérito?

- Pois acredito. E no Pai Natal e na história da Carochinha – e piscou-me o olho, enquanto, com um gesto de cabeça, me indicou uma mesa.

Percebi o sinal. Refinei a minha actuação de parvo, já não para esgrimir com ele, mas para os três homens sentados na mesa, que tinham interrompido a sua conversa quando a nossa começara.

- Mas isto com mais umas medidas de austeridade vai lá.

- O remédio é mesmo esse: mais desemprego, menos poder de compra, menos receita fiscal, mais falências, mais recessão, mais austeridade, mais desemprego… e vira o disco e toca o mesmo. E nós a entrarmos que nem uns tansos.

- Se eles o dizem… Não foram eles que estudaram? E, principalmente, não foi neles que o povo votou?
O senhor Adérito pôs-se a olhar para mim, com um ar muito sério, coçou o queixo e disse:

- Anteontem, um rapaz matou a mãe, depois de ter, aqui há uns tempos, espancado o pai. Era esquizofrénico e, segundo disseram nas notícias, andava descompensado porque não tomava os medicamentos.

- Ouvi falar disso, sim – disse eu.

- Sabe quem matou a mãe do rapaz? Foram os nossos governantes. Sabe porquê?

- Sou todo ouvidos…

- Porque já não havia dinheiro naquela casa para os medicamentos, que deixaram de ter a comparticipação que permitia aos doentes sem recursos adquiri-los. Eram quase gratuitos. Agora, custam balúrdios. Como é que um doente com uma doença incapacitante se pode tratar nestas condições?

Percebi que o senhor Adérito cada vez mais não estava a falar para mim, apesar de estar a falar comigo. Aparei-lhe no jogo.

- Está a chamar criminosos aos nossos governantes?

- E devia chamar-lhes o quê? Se nos tiram o pão da boca, os medicamentos, o salário, o ganha-pão de milhões de pessoas, se puseram o país de rastos, o que hei-de eu chamar-lhes?

- Com uma casa aberta, não acha que deveria… sei lá, moderar a sua linguagem?

- Já não tenho uma casa aberta. Tenho uma casa a fechar devagarinho. E olhe que nada fiz para isso. Mas já não ganho para as despesas, amigo João. Agora, a minha filha está outra vez desempregada. Se o meu genro também perde o emprego, quem é que lhes vai valer, já viu?

- Há quanto tempo está aqui, senhor Adérito?

- Há quarenta e dois anos. E nunca falhei um dia, salvo quando morreram os meus pais. Abria antes das sete, nunca fechava antes da meia-noite, e estava sempre a entrar gente. Agora, aparece um cliente de vez em quando, quando dantes, aos pequenos-almoços e a seguir ao almoço e ao jantar, não tinha mãos a medir.

- Não há dinheiro.

- Só no bolso de quem trabalha é que não há dinheiro. Pelos vistos, foi todo parar ao bolso dos investidores. Explique-me lá você, que percebe disto, como é que há gente tão rica, tão rica, que tem dinheiro para emprestar aos países? Terão minas de ouro?

- Eu não percebo nada disto, senhor Adérito. Mas se os tais investidores têm dinheiro para emprestar aos países, certamente que o ganharam honestamente. Pelo menos, ninguém os acusou de nada.

- Honestamente?! Acha?

- Acha que não?

- Acho, não: tenho a certeza. Dinheiro honesto é o que consegue a trabalhar, e não à custa do trabalho dos outros.

- É roubado, então, o dinheiro deles? É isso que está a dizer?

- É pior. Um tipo que rouba, arrisca o pelo. Eles não roubam, mas pagam a quem faz as leis que permitem, de forma legal, que os estados criem mecanismos para eles ficarem com a riqueza que os que trabalham produzem. O dinheiro que eles nos emprestam é o dinheiro que os nossos governos lhes meteram, legalmente, mas imoralmente, nos bolsos.

- Está a dizer-me que os nossos impostos servem para sermos sangrados, em vez de servirem para nos serem devolvidos em qualidade de vida? Melhor saúde, melhor educação, melhor agricultura, melhor pesca, mais e melhor indústria. É isso?

- Nem mais.

- Mas como é que saímos desta? Se o povo vota sempre nos mesmos, as políticas vão ser sempre as mesmas.

Ouvi um arrastar de cadeiras atrás de mim. Um homem baixo, bem vestido, chegou-se ao balcão e perguntou quanto era a despesa.

- São só as três bicas, não é verdade? Um euro e sessenta e cinco.
O homem pagou e encaminhou-se para a porta, onde já estavam os outros dois à espera. Saíram.

- Quem eram? – perguntei.

- Não os conhece?

- Nem olhei bem para eles.

- São os três da assembleia municipal. O que veio pagar, é do PS; os outros dois são do PSD.

- Afastei-me disso tudo. Não os conheço, nem quero conhecê-los.

- Olhe que deve conhecer bem os seus inimigos…

Ri-me.

- Não sabe o que dizem os cérebros bem pensantes? Que em democracia não há inimigos. Dizem, essas boas almas, que num regime democrático só existem adversários políticos.

- A porra toda, sô João, é que os nossos adversários políticos estão a fazer-nos pior que os velhos inimigos fascistas. E a isto não há volta a dar.

E as lágrimas corriam pelo rosto honrado do senhor Adérito.

1 comentário:

São disse...

Bem regressado sejas!!

Já não era sem tempo!!

Eu nunca utilizara até agora a palavra roubo relativamente ao Governo, mas com o actual não há outro termo!!!

Um abraço com saudades.