Tudo começou com uma gripe. Aos 83 anos, ainda dava os seus passeiozitos e lia o jornal. Mas a gripe foi, como soe dizer-se, do caixão à cova. Bem. Para sermos rigorosos, não meteu logo caixão, nem cova, mas uma ida ao centro de saúde (a arder em febre, pelas cinco e meia da manhã, para conseguir a senhazinha mágica que lhe garantisse consulta, caso o médico não faltasse).
Às duas da tarde, lá foi visto pelo senhor doutor, que disse: «Isto está feio, senhor Francisco. Se calhar, vamos precisar de um RX ao tórax e de umas análises. Para não andar a perder tempo, vou mandá-lo já para o hospital, está bem?». E franziu o sobrolho para o filho, a quem murmurou, à saída: «Anda por ali uma pneumoniazita. Vamos ver no que dá…».
No hospital, apesar de ir com a papelada passada pelo centro de saúde, esperou até às sete da tarde, enquanto o filho arrepelava os cabelos, a pensar no trabalho e no dia perdido. Ainda por cima, estava na firma há dois meses, a prazo – e foi o que se arranjou, depois do emprego anterior ter ido à vida, quando a fábrica se mudou para a Eslovénia.
Era mesmo uma pneumonia. Só depois é que veio o AVC, porque um mal nunca vem só. Teve alta ao fim de quinze dias, completamente paralisado do lado direito, a boca à banda, e sem dizer coisa com coisa. Teve alta, que é como quem diz: «Pronto, pode ir morrer para casa sossegadinho, que aqui não há mais nada a fazer. Depois, os doentes com AVC saem muito caros ao Estado, e os hospitais bem geridos não podem dar-se ao luxo de ter aqui doentes nas suas condições».
Mas o senhor Francisco era de boa cepa. Mesmo feito num trapo, recusava-se a morrer. Comidinha, só caldos muito bem ralados, e dados à boca. Necessidades, só na fralda, e várias vezes ao dia. Medicamentos, aos montões, e cada vez mais pesados na bolsa. A única coisa que se mantinha como estava quando lhe deu a macacoa, era a reforma, de exactamente 243 euros e 82 cêntimos, ou seja, de pouco mais de 48 contos.
Ao fim de uns dias, a nora, desesperada, disse para marido: «A reforma do teu pai não dá para nada. Nem para os remédios, nem para as fraldas, nem para a comida. Não dá para nada. Tu ganhas uma miséria, eu estou desempregada, com o subsídio de desemprego a chegar ao fim, temos dois filhos a estudar, não sei como vai ser».
O marido olhou para o tecto e disse: «Pois… Se a gente o metesse num lar…». E ela: «Num lar?! Estás doido, ou quê?! Mesmo que o aceitassem, levavam, pelo menos, o dobro da pensão dele. Onde é que íamos buscar o dinheiro?». Ele fez que sim com a cabeça, e desabafou: «Logo havia de acontecer isto, numa altura tão má…».
Passaram-se os dias, as semanas, e o senhor Francisco, com o corpo numa lastimosa chaga, deixou-se de tudo, menos de respirar. O filho ou a nora, a horas certas, faziam-no engolir o caldinho e os medicamentos, não sem antes colocarem um espelho à frente da boca do enfermo, para ver se já não embaciava, ou de lhe encostarem o ouvido ao peito, na esperança de perceberem se o coração, finalmente, resolvera parar. Mas nada. Era aquele respirar difícil, mas teimosamente persistente, e o tic-tac constante do coração impiedoso, incapaz de perceber os incómodos que estava a causar.
Um dia, o Sandrinho perguntou: «Ó pai, o avô Francisco está morto, ou vivo?». O pai, incomodado, respondeu que o avô Francisco estava vivo, claro, mas pôs-se a pensar, com os seus botões, que, a bem dizer, estava mais morto do que vivo. Na verdade, aquilo já não era vida, não era nada.
À noite, no sossego da cama, contou à mulher a pergunta que o filho lhe fizera, acrescentando que seria uma bênção para todos se a morte levasse o velhote. «Era bom para ele, e era bom para nós, que já não podemos aguentar isto muito mais tempo», respondeu a mulher.
Nessa noite, ambos deram voltas à cabeça, procurando soluções para o problema. De manhã, o filho do senhor Francisco agarrou num alfinete e picou, levemente, os braços e as pernas do pai. Num um gemido, nem um movimento reflexo. Encostou a cabeça ao peito do velhote, e lá estava o coração, no seu ritmo incansável, como um relógio antigo: tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac… Voltou a picar, e nada, nem a mais pequena reacção.
Foi chamar a mulher, segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido, ela fez que sim com a cabeça, e disse. «Se achas que é a solução…». Entraram no quarto do velhote e, dez minutos depois, estavam a ligar para a agência funerária. Estavam destroçados, mas sabiam que tinham tomado a solução correcta.
Quando os filhos acordaram, notaram logo que havia qualquer coisa no ar, pois o pai tinha os olhos vermelhos e a mãe choramingava pelos cantos. Correram ao quarto do avô e notaram que estava muito branco e frio.
- O avô morreu? – perguntaram, alarmados.
- Não – respondeu o pai. – Foi só interrompido.
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