Para quem não conhece as origens da expressão Vitória de Pirro, ou seja, uma vitória inútil, ou que pode, até, conduzir a uma derrota, aqui deixo a explicação: Pirro II foi rei do Epiro. Desembarcou em Itália e venceu os romanos em Heracleia, em 280 a.C., mas com tais perdas, que a quem o felicitou pela vitória respondeu que «com outra assim, estou perdido». Como esteve. De facto, conquistou a Sicília, mas foi derrotado pelos romanos em 275 a.C..
Posta esta explicação, vamos lá às provocações.
Pronto! De súbito, o país festeja, feliz e emocionado, a sua entrada no futuro. Venceu o Sim. Resolveu-se o maior, o grande, o verdadeiramente dramático problema nacional. De tal modo grande e dramático, que foi o único capaz de juntar, do mesmo lado, personalidades e forças políticas e sociais que desde sempre se antagonizaram. Mas, finalmente, somos um país moderno. No dia 11 de Fevereiro de 2007 (data que ficará, indelevelmente, marcada nos anais da história pátria) demos o salto civilizacional que faltava para nos cumprirmos como país digno, moderno e desenvolvido.
Nos próximos anos, abúlicos e cordatos, assistiremos, do sofá da nossa habitual indolência, ao decorrer da vida colectiva. Não teremos, tão próximo, outra mobilização social como esta, apesar da sua fraca expressão nas urnas. Isso não interessa. Nenhum outro problema nacional, seja ele qual for, voltará a pôr do mesmo lado Valentim Loureiro, Edite Estrela, Rui Rio, Odete Santos, Maria de Belém, Jorge Coelho, Correia de Campos, José Sócrates, Louçã, António Vitorino e Jerónimo de Sousa, entre outros. Não admira! Nenhum outro problema nacional (se houver algum, coisa de que já se duvida…) terá a dimensão que tinha o problema do aborto.
Agora, o país espreguiça-se, satisfeito, na ressaca do grande feito. Aliás, o investimento estrangeiro vai subir em flecha, pois as clínicas espanholas, especializadas nas humaníssimas e supercivilizadas técnicas abortivas, já estão aí a bater à porta para o grande negócio. Para além do investimento externo tão necessário à nossa economia, há a vantagem das tais madames, das tais senhoras de posses, que os preclaros defensores do Sim acusavam de poderem ir abortar a Espanha, agora terem o aborto quase ao domicílio. Sempre se poupa na viagem. Enfim, e com o aborto a la carte, não se prevê, nesta área, o problema de futuras deslocalizações, como acontece nos têxteis, metalo-mecânica, no calçado ou nas cablagens.
Em breve, teremos estas clínicas a subscrever convenções com o Estado português, para garantir a realização dos abortos que os serviços públicos não fizerem, e para aí não teremos restrições orçamentais, como acontece, por exemplo, com as hemodiálises. Compreende-se. Se alguém é insuficiente renal, olhe… que não fosse, tivesse cuidado. Ou pensa que ter os rins destruídos é tão grave como uma gravidez não desejada?
Maria José Morgado, por seu lado, pode agora dedicar-se em pleno ao Apito Dourado, pois já não terá de se preocupar com as slotmachines dos desmanchos, nem com os seus lucros fabulosos, já que tudo é legal. Legalíssimo. A Justiça pode respirar, enfim tranquila.
Nos hospitais, continuam as listas de espera, sejam elas para consultas de especialidades, sejam para operações, mas isso compreende-se, não há a urgência de atender as pessoas até às dez semanas. Esperem meses, anos, morram até, se não aguentarem a espera, mas o aborto tem prioridade sobre tudo o resto. Despachem-se para Badajoz as grávidas que não querem abortar; os cegos que vão, por sua conta e risco, recuperar a vista à Ucrânia; façam-se subscrições públicas para pacientes das mais diversas doenças e incapacidades se irem tratar a Cuba; recuse-se a vacina gratuita contra o cancro do colo do útero, que, anualmente, afecta cerca de mil mulheres, e mata mais de 300 em cada ano que passa, porque as prioridades, meus amigos, essas foram bem definidas em 11 de Fevereiro e nas semanas que o antecederam: o aborto está primeiro. É uma questão da saúde pública. O resto, é nada. Ou quase nada.
Porque se fosse muito – se fosse algo de dramático ou realmente importante – aí teríamos, como tivemos agora, Valentim Loureiro, Edite Estrela, Rui Rio, Odete Santos, Maria de Belém, Jorge Coelho, Correia de Campos, José Sócrates, Louçã, António Vitorino e Jerónimo de Sousa, todos juntos – e do mesmo lado da barricada – a lutar por essas causas.
Aproveitando o remanso, esta lassidão que se acentua depois das grandes batalhas e das grandes vitórias (mesmo que de Pirro sejam), o Governo prepara-se para pôr os portugueses a pagar aquilo que já pagaram. Trata-se de uma nova taxa, a ser paga na factura de electricidade, para recolha e tratamento dos lixos domésticos e industriais. Que eu saiba, as câmaras são financiadas, desde sempre, com os nossos impostos – deste os tempos da monarquia, sem esquecer os quarenta e oito anos de ditadura – para fazerem esse serviço. Afinal, para que é que servem – e são financiadas – as câmaras? Se não é para manterem as ruas limpas, os jardins tratados, o lixo recolhido e depositado nos locais adequados, os esgotos a funcionar e a população abastecida de água, é para quê que têm receitas próprias e recebem verbas do Poder Central?
Também por estes dias, assim como quem não quer a coisa, voltou a falar-se num imposto para a Saúde. O Governo veio dizer que isso é apenas uma proposta incluída num estudo que mandou fazer, mas que não há nenhuma decisão nesse sentido. O que não quer dizer que não venha a haver – e que talvez até se justifique, para financiar as despesas suplementares que milhares de abortos anuais irão provocar no orçamento da Saúde, não é verdade? Afinal, não foi isso que, maioritariamente, os portugueses decidiram? Então os meus amigos nunca ouviram falar no défice?
Mas para além disto, destes pequenos detalhes, o país está bem e recomenda-se. Nada que justifique novas agitações, novas campanhas, novas alianças (implícitas ou explícitas), mais comícios, mais arruadas, mais protestos, mais esclarecimentos, mais mesas redondas, mais artigos de opinião, mais debates, mais chinfrim, mais esbracejar.
Venham mas é de lá mais impostos, mais taxas e tarifas, mais desemprego, mais trabalho precário, mais escolas encerradas, mais – e maiores – listas de espera, mais urgências e maternidades fechadas, mais mortos por falta de assistência, mais salários em atraso, mais medicamentos não comparticipados, ou com comparticipações mais baixas, mais mortes escusadas (se a Saúde fosse uma prioridade, como foi o aborto), enfim, mais do mesmo, porque nada disso é grave, nada disso é indigno, nada disso é desumano, nada disso merece ser atacado com urgência. Já!
Porque se merecesse, meus amigos, era disso que tínhamos estado a tratar nos últimos tempos, e não do que estivemos.
E contra estes factos – julgo eu – não há argumentos…
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