Há dias, um fala-barato – ou melhor:
um escreve-barato, apesar de não dever receber pouco pelo que escreve –, cujo
nome me escapou, dizia que a ausência da Associação 25 de Abril, de Soares e de
Alegre das comemorações oficiais que assinalavam a data, era uma atitude
reprovável, pois as políticas que assim pretendiam contestar são decorrentes da
vontade do povo, democraticamente expressa pelo voto. Logo, contestá-las era agredir
o espírito de Abril, dado que os ideais da Revolução não têm donos. Ou, a
tê-los, somos todos nós.
Não posso discordar mais desta
opinião. E por várias razões, todas elas de uma evidência cristalina. Ei-las:
- Em primeiro lugar, um ponto
prévio: se a Associação 25 de Abril – especialmente o coronel Vasco Lourenço –
Soares e Alegres consideram que as políticas em curso são contrárias àquelas
que o 25 de Abril tinha na sua génese (e eu sou o primeiro a estar de acordo
com tal conclusão), há muitos anos que deveriam ter-se abstido de participar
nas comemorações oficiais, pois há muitos anos, com especial destaque para os
anos negríssimos de Sócrates, que essas mesmas políticas crucifixam os
portugueses. Ao não fazê-lo – ou a fazê-lo só agora – é claro que o que move o
senhor coronel, bem como o que dá corda à ridícula dupla Soares/Alegre, não são
as políticas em si, mas interesses meramente partidárias. O que é muito feio e,
por isso, totalmente contrário aos ideais de Abril.
- Em segundo lugar, nem tudo o que é
formalmente democrático é inquestionavelmente democrático. A história está
cheia de exemplos que o comprovam, sendo as eleições ganhas pelo partido Nazi a
lição que melhor o testemunha. Muitos outros há. Aliás, eleições limpas e
democráticas, ganhou-as a Frente Islâmica de Salvação, há vinte anos, na
Argélia, coisa que a UE e os EUA não aceitaram, forçando a sua anulação. A
partir daí, a Argélia tem vivido num quase permanente estado de sítio, algo que
não embaraça dos grandes democratas que mandam no globo. Mas há mais. O que
acontece, por exemplo, quando de um referendo não saem os resultados que o
poder político (dito democrático, note-se) deseja? Repete-se o referendo até
que o resultado seja o pretendido, como aconteceu na Irlanda. Mas há ainda
melhor: actualmente, para que ninguém possa ser acusado de falta de espírito
democrático, coisa que se tornou evidente no escandaloso caso da Irlanda,
decide-se, muito simplesmente – e para evitar surpresas –, nem se fazer
referendo, como já aconteceu em Portugal. Sobre o que é realmente democrático,
quase que estaríamos conversados.
Ora, há muitos motivos para se
concluir que os pressupostos necessários para conferir legitimidade democrática
a umas eleições não foram cumpridos no caso do acto eleitoral do qual resultou
a actual composição da Assembleia da República e, por consequência, resultou o
governo PSD/PP.
Um desses motivos, é que durante o
período pré-eleitoral e, mais intensamente, durante a campanha eleitoral, não
só foram escamoteados ao eleitorado dados fundamentais para uma decisão
informada e consciente, como foi o mesmo confrontado, por um lado, com
promessas de determinadas realizações, ao passo que, por outro lado, eram os
eleitores tranquilizados com garantias de que certas decisões jamais seriam
tomadas.
De facto – e como, desgraçadamente,
vai sendo um hábito dos políticos do «arco do poder» – prometeu-se fazer o que
não se pensava fazer (e até já se confirmou que não se fará), e garantiu-se que
nunca, em circunstância alguma, se tomariam decisões políticas que, meses
passados, aí estão em doses inimagináveis. Isto, só por si, fere de
legitimidade democrática o actual governo, como, aliás, outros antes deste
foram feridos por iguais artimanhas.
Outro motivo, decorrente deste, é
alegar-se ignorância sobre o verdadeiro estado das finanças públicas, algo que,
a ser verdade, constituiria o mais decisivo atestado de incompetência e
debilidade mental que se poderia conferir a um político. Na verdade, ninguém
minimamente informado estava, à data das declarações proferidas em campanha
eleitoral por Passos Coelho, alheio à real situação do país, a começar,
exactamente por ele, dado que já resolvera subscrever as medidas de
austeridade, mão-na-mão com José Sócrates. Sabia porque o fazia. E até pediu desculpas
ao país.
Assim sendo, resta concluir que
Passos Coelho mentiu com plena consciência de que estava a mentir, e que à
mentira recorreu por ter a noção que, só assim, poderia merecer a confiança
indispensável do eleitorado, tendo em vista a vitória nas eleições. Se isto for
aceite como um acto normal e correcto em democracia, então a democracia tem que
rever todos os seus valores e conceitos. Que não serão, seguramente, os valores
e conceitos constantemente apregoados.
Ainda um outro motivo: aplicadas as
medidas de austeridade que, conjuntamente, o PS e o PSD acordaram com a Troika
estrangeira, o actual governo, a um ritmo constante, acrescenta mais
austeridade à austeridade antes considerada necessária, desdizendo-se a si
próprio, chegando ao extremo de, apanhado em contradições crassas e
indesmentíveis, atribuir a «lapsos» as suas afirmações iniciais.
Ora, nada disto se coaduna com a
Democracia e com os valores que, implicitamente, lhes estão inerentes. A
mentira, o descaramento, a manipulação de dados como meio de manipular
consciências, a incoerência e os caminhos ínvios para alcançar objectivos,
sejam eles quais forem, tudo isto é a negação – a falsificação – da verdadeira
Democracia.
- Em terceiro lugar: sendo, como se
diz, a Democracia o governo do Povo, para
o Povo, como se pode considerar democrática uma prática governativa que
promove e agrava as desigualdades sociais, cabendo precisamente ao Povo o papel
de espoliado, enquanto uma restrita faixa de oligarcas goza de privilégios que
a mantém a salvo de sacrifícios, para além de estar ao abrigo de um imenso rol
de impunidades, que ganham especial relevo a nível da aplicação da Lei? Nesta
alegada democracia, a classe dominante (poder económico e poder político,
mancomunados) põem e dispõem a seu bel-prazer no plano político, económico,
financeiro e judiciário, tendo-se transformado numa casta superior, pelo que a
matriz que conduz a nossa vida colectiva é, indubitavelmente, uma matriz
feudal. Ou seja: antidemocrática, imoral, desumana e socialmente segregacionista.
- Em quarto lugar: não podem
considerar-se democráticas práticas políticas, financeiras e económicas que
conduziram o país ao descalabro actual, já que elas não foram escrutinadas por
ninguém, nem foram divulgadas ou colocadas à discussão do eleitorado em nenhum
momento. E, principalmente, não são práticas democráticas sujeitar-se a
generalidade da população a pagar a factura do descalabro, sem que os seus
autores sejam responsabilizados civil e criminalmente pelos actos praticados à
revelia do país, ficando, pelo contrário, senhores de todos os seus direitos e
regalias, como se nada de extremamente grave tivessem praticado.
- E, finalmente, em quinto lugar: os
valores essenciais de Abril e as suas preocupações em democratizar TODAS as
vertentes da sociedade portuguesa, há muito que desaparecerem das práticas
governativas.
Não se combate a fome e o
desemprego, que alastram de forma epidémica. Aliás, – e confessadamente – todas
as opções políticas concorrem para o seu alastramento.
Ter acesso à Educação, à Saúde e à
Justiça volta a ser um privilégio das classes mais elevadas da população,
enquanto no lado oposto aumenta o número de portugueses que, diariamente, se vê
empobrecer. A única certeza que milhões de cidadãos actualmente têm, é que o
dia de amanhã será muito pior que o dia de hoje, sem que tenham contribuído
minimamente para tal.
A criminalidade de colarinho branco
alastra impunemente, o que a par da crise económica (o desespero), dá asas
(força «moral»),à criminalidade violenta que abala o nosso quotidiano. A
corrupção é um fenómeno que ninguém se atreve a negar, mas que ninguém se
atreve a combater, principalmente porque quem o poderia fazer vive no ambiente
onde ela medra. E dela abundantemente se mantém.
O Estado é delapidado por interesses
partidários – ou de seita – acomodando, à vez, os correligionários de quem
ocupa o poder, e a promiscuidade entre o poder económico e o poder político já
nem precisa de se resguardar dos olhos esbugalhados da opinião pública, tão
normal se tornou.
Na verdade, até os inimigos do 25 de
Abril acham conveniente adornar-se com um cravo vermelho, embora tratem o povo
português, em muitos casos, como nem a própria ditadura fascista alguma vez se
atreveu a tratar.
Vende-se a Pátria a retalho – e nem
sempre a quem dá mais. O interesse nacional é submetido aos interesses
económicos, sendo que só se consideram legítimos os lucros privados, pois,
segundo a ordem vigente, é crime de lesa-economia ser o Estado (o público, o
país) a lucrar. Dizem que o estado não tem vocação para gerir empresas, mas não
se impedem de vender uma das mais lucrativas empresas nacionais, precisamente…
a uma empresa estatal estrangeira.
Para vergonha da «democracia» em
vigor e dos «democratas» que dela se alimentam, muitos deles para o resto das
suas confortáveis vidinhas, enquanto a ditadura abria escolas, tribunais,
postos de saúde, hospitais e garantia a reforma após uma vida de trabalho,
agora fecham-se escolas, tribunais, centros de saúde, maternidades, urgências
hospitalares e ameaça-se com o espectro da falência da Segurança Social,
enquanto que, ardilosamente, se vai sugerindo à população que entregue a sua
velhice nas mãos gulosas do negócio privado.
Mas sem o mínimo de decoro, a elite
governante e empresarial, sempre às custas do erário público – e enquanto
aumenta a idade de reforma e diminui o valor das reformas e pensões de
sobrevivência aos portugueses comuns – estabelece para si reformas rápidas,
múltiplas e avantajadas.
Como podem, assim, os fala-baratos,
os governantes, os senhores grandes empresários, os seus escribas e pajens,
enfim, toda essa elite bem pensante e bem alimentada que detém o poder e dele
vive faustosamente, reivindicar para si o 25 de Abril e dizer que tudo o que aí
está não só é o 25 de Abril, como é, acima de tudo, verdadeiramente
«democrático»?
Talvez se sintam animados a tal
dizer porque, ainda há dias, alguém fez estralejar foguetes a festejar o 25 de
Abril! Como se ficassem bem festejar o que já não está connosco.
O que aí está não é o 25 de Abril,
nem é democracia. Talvez uma ditaducracia, não sei…
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