6.19.2007

Siderurgia Nacional - testemunho de um crime


O mais giro, é que ninguém foi preso...


A história que eu vou contar não é ficção. É uma história que se passou em Portugal, nos nossos dias. É a história de um grande crime, com vários crimes menores pelo meio. É, em suma, uma história de terror.

No dia 5 de Março de 1998, escrevia eu no jornal Outra Banda: «O fim da Siderurgia Nacional, como empresa estratégica ao serviço dos interesses nacionais, está praticamente consumado. O processo arrastou-se ao longo de vários anos, mas caminha agora para um fim inexorável e muito bem definido: colocar um instrumento necessário ao desenvolvimento nacional e ao bem-estar dos portugueses nas mãos de quem, a nível europeu, quer, pode e manda na indústria siderúrgica».

Mas para que se compreenda melhor todo o processo, é preciso dizer que Portugal nunca produziu mais do que 60% das suas necessidades em produtos siderúrgicos. Conscientes desse défice, que obrigava o país a importar os restantes 40%, o que o colocava numa perigosa e caríssima dependência do estrangeiro, nos finais da década de setenta, início da década de oitenta, o Estado entendeu – e bem – executar um plano de desenvolvimento da Siderurgia Nacional. Investiram-se, então, já em meados anos 80, 70 milhões de contos nesse plano, o que incluiu trabalhos de terraplanagens e compra de equipamentos, entre eles um novo alto-forno, que ficou acondicionado nos terrenos da empresa. Convém dizer que, na época, trabalhavam na Siderurgia Nacional, entre as instalações de Aldeia de Paio Pires e da Maia, cerca de 6.500 pessoas.

Porém, por essa altura, iniciaram-se as conversações para a adesão de Portugal à CEE, que impuseram, entre outras obrigações, a necessidade de reduzir a nossa produção de produtos siderúrgicos, pois a Comunidade era, como parece que ainda é, excedentária nessa matéria.
Ora, se isso era verdade em relação à Comunidade, não o era em relação a Portugal, que precisava de produzir mais para satisfazer o seu consumo interno. Parece lógico que, a haver redução de quotas, deveriam ser os países que produziam acima das suas necessidades a fazê-lo, e nunca Portugal. Por incompetência, cobardia ou outra razão qualquer ainda mais censurável (e seria bom que, um dia, os dossiers fossem divulgados para conhecermos os nomes e as caras desses vendilhões da pátria), a verdade é que fomos forçados a sacrificar o interesse nacional para comprarmos os produtos siderúrgicos produzidos no estrangeiro.

Para além dos 70 milhões de contos assim deitados à rua – apenas o alto-forno, que entretanto apodrecia nos caixotes expostos ao tempo, permitiu algum retorno, pois foi vendido para um país asiático – também se comprometeram as hipóteses de garantir, no futuro, o nível de emprego e a estabilidade social de milhares de trabalhadores e suas famílias.

Se o que acabamos de relatar é mau, o que estava para vir não seria melhor.

Mentindo aos portugueses, o governo de Cavaco Silva acabou aquilo que a governação de Mário Soares havia começado. Estou a falar do desmembramento e venda da Siderurgia Nacional a empresas estrangeiras, o que - e ao contrário do que afirmaram, em coro, PS e PSD - não foi uma imposição, nem uma consequência da integração na CEE. Aliás, depois desta venda, passámos a ser o único país da então CEE que não tinha uma indústria siderúrgica própria.

Mas se o desmantelamento e venda da SN foram um autêntico crime de lesa-pátria, as peripécias da venda atingiram as raias do autêntico escândalo, próprio de uma qualquer – e autêntica – república das bananas.

Depois de dividir a SN em três empresas (SN-Serviços, SN-Empresa de Produtos Longos e SN-Empresa de Produtos Planos), o Governo decidiu manter na pose do Estado apenas a SN-Serviços, abrindo à privatização as outras duas. Em 18 de Setembro de 1995, é decidida a privatização da SN-Empresa de Produtos Longos, de Aldeia de Paio Pires e da Maia, a qual é adquirida por 3,750 milhões de contos, pelo grupo constituído pela Metalúrgica Galaica, SA e a Herisider Holand, B.V., uma empresa do Grupo Riva, considerado como os patrões do aço a nível europeu. E os compradores terão feito, sem a menor dúvida, o maior e melhor negócio do século passado, digno de figurar no Guiness.

De facto, por apenas 3,750 milhões de contos, a nova empresa ficou proprietária de todas as instalações e equipamentos das fábricas da Maia e de Aldeia de Paio Pires, das respectivas linhas de produção, correspondendo tudo a uma área de 83 hectares. Mas, para além disso, ficou a deter, também, 5 milhões de contos em stocks (isto é, produtos já fabricados, que, só eles, valiam mais do que o preço pago por tudo) e, como cereja em cima do bolo, de mais 9 milhões de contos em créditos, ou seja, valores a receber por vendas feitas antes de terem comprado as fábricas. Contudo, o Estado português, que abriu mão dos seus créditos, assumiu, pelo contrário, todos os débitos existentes à altura da venda.

Resumindo: a RIVA comprou por menos de 4 milhões de contos aquilo que valia, no mínimo, 14 milhões de contos. Sendo assim, não espanta sabermos que, tempos depois, cedeu a sua posição aos seus parceiros espanhóis por um valor que rondou os 20 milhões de contos.

Foi de tal ordem o escândalo, que o Eng. Silva Carneiro, na altura deste mirabolante negócio presidente do conselho de administração da SN, foi despedido sem justa causa, mas o inquérito que Augusto Mateus, secretário de Estado de Guterres, em finais de 1995, então prometeu, perdeu-se nas inúmeras gavetas do poder político.

A partir daqui, sucederam-se os despedimentos de milhares de trabalhadores. E como nota final, também ela explicativa da subserviência do Estado português aos interesses económicos – e dos muitos negócios subterrâneos que se adivinham no meio desta trapalhada toda – enquanto o alto-forno funcionou, a SN-Serviços, a única que se manteve nas mãos do Estado português, fornecia à SN-Longos as matérias primas (bilhetes, produzidos a partir da gusa líquida, via alto-forno, e energia).
Porém, com a substituição no alto-forno por um forno eléctrico, enganam-se os que pensam que o novo forno ficou nas mãos nacionais. Nada disso. Agora, toda a produção passou para as mãos privadas, que são, como sabemos, estrangeiras. Portugal perdeu totalmente o controlo sobre uma área estratégica fundamental para o seu desenvolvimento, que é a produção de produtos siderúrgicos.

E aqui vos deixei os traços principais de um crime – de vários crimes – em consequência dos quais o país saiu altamente lesado. Mas de onde, para além dos grandes interesses económicos estrangeiros, alguém deve ter ficado muito bem na vida.

Mas a verdade é que ninguém foi preso.

5 comentários:

Mar Arável disse...

Mais um bom testemunho para registo

A ota e o tgv estão na forja.

A indiferença torna o ar mais irrespirável.O poder está contaminado - e a questão é saber como abrir os olhos aos cegos - mais - saber se os cegos querem ver.

Abraço amigo

Anónimo disse...

Já agora seria interessante que o administrador deste blog se referisse também à Lusosider e tentasse saber o que lá se passa.
Pode crer que dá um bom motivo de reportagem.......

Anónimo disse...

E já agora porque não investigar também as estranhas relações entre a actual administração da Siderurgia e a CMS na questão dos terrenos norte da Siderurgia? - Decerto encontraremos mais quem vá ficar bem de vida depois de mais esta negociata!

nunocavaco disse...

Excelente post. Dá que pensar no que as pessoas não sabem e no que se faz em prol ...

Anónimo disse...

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