5.02.2007

Era uma vez...


Era uma vez um senhor chamado Vasconcelos… A história podia começar assim, como qualquer história de encantar crianças, se é que às crianças de hoje ainda se contam histórias de encantamento e final feliz. Parece que o que se usa agora é pô-las a ver desenhos animados mais ou menos imbecis – ou mais ou menos eivados de violência pretensamente cómica – se não puder ser uma daquelas coisas computadorizadas, as chamadas playstations, com jogos de guerra, onde as explosões, os disparos, a destruição e os massacres transmitem o american way of life, que é como quem diz: destrói tudo o que te apetecer destruir.

Mas era uma vez um senhor chamado Jorge Vasconcelos, que era presidente de uma coisa chamada ERSE, ou seja, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, organismo que praticamente ninguém conhece e, dos que conhecem, poucos devem saber para o que serve. Mas o que sabemos é que o senhor Vasconcelos pediu a demissão do seu cargo porque, segundo consta, queria que os aumentos da electricidade ainda fossem maiores.

Ora, quando alguém se demite do seu emprego, fá-lo por sua conta e risco, não lhe sendo devidos, pela entidade empregadora, quaisquer reparos, subsídios ou outros quaisquer benefícios. Porém, com o senhor Vasconcelos não foi assim. Na verdade, ele vai para casa com 12 mil euros por mês – ou seja, 2.400 contos – durante o máximo de dois anos, até encontrar um novo emprego.

Aqui, quem me ouve ou lê pergunta, ligeiramente confuso ou perplexo: «Mas você não disse que o senhor Vasconcelos se despediu?». E eu respondo: «Pois disse. Ele demitiu-se, isto é, despediu-se por vontade própria!». E você volta a questionar-me: «Então, porque fica o homem a receber os tais 2.400 contos por mês, durante dois anos? Qual é, neste país, o trabalhador que se despede e fica a receber seja o que for?».

Se fizermos esta pergunta ao ministério da Economia, ele responderá, como já respondeu, que «o regime aplicado aos membros do conselho de administração da ERSE foi aprovado pela própria ERSE». E que, «de acordo com artigo 28 dos Estatutos da ERSE, os membros do conselho de administração estão sujeitos ao estatuto do gestor público em tudo o que não resultar desses estatutos». Ou seja: sempre que os estatutos da ERSE foram mais vantajosos para os seus gestores, o estatuto de gestor público não se aplica.

Dizendo ainda melhor: o senhor Vasconcelos (que era presidente da ERSE desde a sua fundação) e os seus amigos do conselho de administração, apesar de terem o estatuto de gestores públicos, criaram um esquema ainda mais vantajoso para si próprios, como seja, por exemplo, ficarem com um ordenado milionário quando resolverem demitir-se dos seus cargos. Com a bênção avalizadora, é claro, dos nossos excelsos governantes.

Trata-se, obviamente, de um escândalo, de uma imoralidade sem limites, de uma afronta a milhões de portugueses que sobrevivem com ordenados baixíssimos e subsídios de desemprego miseráveis. Trata-se, em suma, de um desenfreado, abusivo e desavergonhado abocanhar do erário público.

Mas voltemos à nossa história. O senhor Vasconcelos recebia 18 mil euros mensais, mais subsídio de férias, subsídio de Natal e ajudas de custo. 18 mil euros seriam mais de 3.600 contos, ou seja, mais de 120 contos por dia, sem incluir os subsídios de férias e Natal e ajudas de custo.

Aqui, uma pergunta se impõe: Afinal, o que é – e para que serve – a ERSE? A missão da ERSE consiste em fazer cumprir as disposições legislativas para o sector energético. E pergunta você, que não é trouxa: «Mas para fazer cumprir a lei não bastam os governos, os tribunais, a polícia, etc.?».

Parece que não. A coisa funciona assim: após receber uma reclamação, a ERSE intervém através da mediação e da tentativa de conciliação das partes envolvidas. Antes, o consumidor tem de reclamar junto do prestador de serviço. Ou seja, a ERSE não serve para nada. Ou serve apenas para gastar somas astronómicas com os seus administradores. Aliás, antes da questão dos aumentos da electricidade, quem é que sabia que existia uma coisa chamada ERSE?

Mas podem estas coisas acontecer numa república, em regime democrático, num país com sérias dificuldades económicas, com mais de meio milhão de desempregados, onde os ordenados e as prestações sociais são as mais baixas da Europa, onde o trabalho precário alastra e as condições de vida da maioria da população diariamente se agravam, com uma economia inerte e mais de dois milhões de pessoas a viverem abaixo do limiar da pobreza? Podem estas coisas acontecer num quadro destes?
Não deviam, mas, pelos vistos, acontecem. E acontecem, porque a decência e a vergonha, o sentido de Estado e a ética republicana e democrática são coisas insignificantes – e incómodas – para o carácter peculador da maioria da nossa classe política. Se é feio – e ilegal – furtar dinheiro ou rendimentos públicos, então, produza o peculador a lei ou as normas necessárias a que seu acto, sem deixar de ser imoral e reles, passe a ser coisa legal, de modo a que por ele não venha a responder. E a isto chamo eu, além de roubo, abuso do poder. Um bacanal, em suma.
Disse aqui, há oito dias, que no dia 25 de Abril de 1974 nunca me passou pela cabeça que, 33 anos depois, Portugal fosse um país socialmente injusto, politicamente indecente e culturalmente intragável.

E se me tivessem dito, nesse dia, que dali a trinta e três anos, mais de dois milhões de portugueses viveriam na miséria, que teríamos mais de meio milhão de desempregados, que o trabalho precário seria a norma, que milhares de crianças e idosos sofreriam o pesadelo da fome e de uma assistência social deficitária, que mesmo entre milhares de portugueses com trabalho as mesmas carências seriam um facto, dada a insuficiência dos seus rendimentos, e que, enquanto isso, os governantes se refastelariam desbragadamente no aparelho de Estado, produzindo e repartindo entre si as mais vergonhosas benesses, eu soltaria uma imensa gargalhada e diria que, quem tal me afirmasse, não passaria de um louco ou, na melhor das hipóteses, de um fascista despeitado, vilipendiando o alvorecer da democracia.

Hoje, olhando para este bacanal, de que a história do Vasconcelos é apenas um pequeno exemplo, eu gostava de saber se ainda podemos dizer que vivemos em regime republicano e democrático.

E gostava de saber outra coisa: até quando o povo português, cumprindo o seu papel de pachorrento bovino, aguentará tão pesada canga?

E tão descarado gozo?

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